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Artigo: Um indulto sob medida para estancar a sangria

Deltan Dallagnol é procurador da República e coordenador da força-tarefa Lava Jato - Reprodução/UOL
Deltan Dallagnol é procurador da República e coordenador da força-tarefa Lava Jato Imagem: Reprodução/UOL

Deltan Martinazzo Dallagnol*

Especial para o UOL

24/12/2017 08h30

Já se disse que o fim da Lava Jato viria por meio de um acordão “com o Supremo, com tudo”. Provavelmente envolveria o Congresso Nacional, que quase aprovou uma anistia para a corrupção no fim de 2016 --disfarçada, é bem verdade, de anistia a caixa dois. Um ano depois, foi o presidente da República, Michel Temer, que decretou aquilo que pode ser o fim da expansão da Lava Jato. Seu indulto de Natal colocou um torniquete na Lava Jato. A sangria está sendo estancada.

No fim de cada ano, é tradição da Presidência da República emitir um decreto que diminui ou perdoa as penas de quem foi condenado por crimes, o indulto natalino. O perdão das penas fica sujeito ao atendimento de alguns requisitos. Assim, o decreto de indulto de 2016 perdoou, por exemplo, quem (a) fosse primário, (b) tivesse sido condenado por crimes praticados sem violência ou grave ameaça a menos de 12 anos de prisão e (c) tivesse cumprido 25% da pena. Preenchendo os requisitos, a pessoa teve o restante de sua pena extinta e foi solta.

Embora seja o presidente da República que dê o indulto, é o Poder Judiciário que o aplica caso a caso. Contudo, o Judiciário não tem liberdade para deixar de aplicar o perdão da pena a quem preenche os requisitos do decreto. José Dirceu do PT, Pedro Henry do PP e Valdemar Costa Neto do PR tinham sido condenados no Mensalão a pouco mais de 7 anos de prisão por corrupção e, no caso dos dois últimos, também por lavagem de dinheiro. Em 2016, passados apenas dois anos do começo da punição, já preenchiam as exigências do indulto e foram perdoados.

Foi assim que as penas do Mensalão viraram pó. O Ministro Barroso, obrigado a aplicar o perdão presidencial a José Dirceu, já então réu na Lava Jato, registrou seu inconformismo. “O excesso de leniência privou o direito penal no Brasil de um dos principais papéis que lhe cabem, que é o de prevenção”, afirmou. Para ele, a mensagem passada era a de que o crime compensa, o que incentiva novos delitos.

O decreto de 2016 não atingiu os principais réus da Lava Jato porque as penas deles superavam em geral 12 anos. Contudo, o indulto do presidente Temer dá o perdão independentemente do montante da pena total. No caso de crimes praticados sem violência ou grave ameaça como a corrupção, basta ser primário e ter cumprido 20% da pena – quem tem mais de 70 anos, precisa cumprir menos ainda. Como corruptos são em regra primários (mesmo quando praticaram crimes no passado, a demora de seus processos impede que se tornem reincidentes), na prática, basta satisfazer a condição temporal.

Assim, os réus condenados pela Lava Jato que cumpriram 20% de suas penas estão perdoados. É o caso do político João Argolo, punido por corrupção e lavagem de dinheiro com prisão ao longo de 12 anos e 8 meses. Preso em abril de 2015, ele agradece muito o indulto de Natal e já pode sair da cadeia. Sua pena está perdoada. Embora este decreto só as aplique a quem já cumpriu 20% da pena hoje, o problema é que, tradicionalmente, cada decreto de indulto é tão ou mais benéfico do que o anterior. Réus da Lava Jato, portanto, podem nutrir a expectativa de que terão 80% de suas penas perdoadas.

O presente de Natal aos corruptos produz, é claro, uma profunda injustiça. Sequer o ressarcimento dos cofres públicos é exigido para o perdão. Enquanto alguns países são paraísos fiscais ou financeiros, o indulto confirma o Brasil como o paraíso da impunidade dos colarinhos brancos. O problema de segurança pública é ainda maior quando observamos que o perdão se estende de modo amplo também para outros crimes. Segundo um estudo da Transparência Internacional, a “impunidade sistêmica pode ter um efeito catalítico para a corrupção e o crime em um país.” Na Lava Jato, já ouvimos algumas críticas no sentido de que as penas de delatores, que contribuíram com a sociedade, seriam baixas. O que dizer do perdão de 80% das penas de graça, sem qualquer contraprestação em benefício da população?

Contudo, para a Lava Jato, o indulto do presidente Temer é ainda mais grave, pois fulmina a estratégia de expansão das investigações com base em colaborações premiadas, o motor propulsor da Lava Jato. Na colaboração, o réu entrega informações e provas sobre crimes e criminosos, assim como devolve o dinheiro desviado, em troca de uma diminuição da pena. Essas informações e provas são usadas para expandir as apurações e maximizar a responsabilização de criminosos e o ressarcimento aos cofres públicos. O réu só faz um acordo quando corre o risco de ser condenado a penas sérias.

O indulto do presidente Temer cria para o réu uma expectativa fundada de obter um desconto de 80% da sua pena. Então, quem buscará um acordo? É preciso lembrar que, sem acordo, o réu ainda tem em seu favor a chance de anular o caso por supostos vícios procedimentais, de empurrar seu deslinde por décadas e de alcançar a prescrição, uma espécie de cancelamento dos crimes pela demora do processo. Qual o desconto que a Lava Jato precisará oferecer sobre a pena, nesse contexto, para que o réu aceite colaborar com a Justiça? Será que 97% será suficiente?

Se Marcelo Odebrecht e outros delatores soubessem que ganhariam esse presente de Natal, dificilmente teriam feito acordo de colaboração. O perdão de 80% da pena, sem precisar fazer nada, é melhor do que o Ministério Público poderia oferecer. Depois desse novo paradigma de indultos natalinos, será difícil obter a colaboração, assim como a responsabilização efetiva, de qualquer corrupto no Brasil.

O ministro da Justiça Torquato Jardim afirmou, em entrevista, que não é fácil explicar esse indulto à opinião pública, especialmente quando tantos políticos foram condenados ou estão sendo investigados. Concordo com ele, porque seria explicar o inexplicável. O ministro arriscou dizer que seria indevido distinguir entre crimes, ou seja, não poderia excepcionar do indulto o crime de corrupção. Isso é uma desculpa esfarrapada porque o próprio decreto faz tal distinção. Ele proíbe, por exemplo, o indulto em relação ao crime de pornografia infanto-juvenil e, assim, poderia fazer em relação à corrupção.

O indulto é um instrumento de política criminal e penitenciária que serve a questões humanitárias, especialmente para reduzir a superpopulação carcerária. Contudo, o indulto dos corruptos não contribui com esse objetivo porque há poucos presos no Brasil – se tomados todos os casos crimes contra a Administração Pública, correspondem a 0,4% das prisões. No caso da corrupção, o indulto eleva a tensão social, fulmina de morte a delação premiada, desestimula novas investigações, reforça a cultura de impunidade e abala a confiança na Justiça. Além disso, como o efeito dissuasório da punição é sempre um produto do tamanho da pena e da probabilidade de punição, a dificuldade de se descobrir e comprovar esse tipo de ilícito recomenda que sua pena seja majorada, quando o indulto faz o contrário.

O feirão de Natal não foi um escorregão sobre a técnica ou a política criminal. Foi um ato concertado que cria uma saída para condenados na Lava Jato e dificulta, se não impede, novas delações. O Ministério Público Federal, a Transparência Internacional e a força-tarefa da Lava Jato tinham enviado cartas fundamentadas para o Ministério da Justiça, pedindo que o indulto não se estendesse a pessoas condenadas por corrupção.

O próprio órgão que assessora o Ministro nessa matéria --o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária--, decidiu por ampla maioria de 20 contra 3 que o indulto não deveria ser estendido para crimes contra a Administração Pública, como a corrupção. O ministro Torquato Jardim afirmou que a dificuldade de explicar esse indulto é que há “teoria de mais”. Contudo, o problema é o oposto, teoria de menos.

Não se pode desconsiderar o contexto, que este sim, talvez, explique o indulto. Grandes aliados do presidente, como Romero Jucá, Geddel Vieira Lima, Henrique Eduardo Alves, Moreira Franco, Eliseu Padilha e Rocha Loures foram presos ou denunciados por corrupção. Vários líderes partidários compartilham a mesma condição – apenas a colaboração da Odebrecht implicou 416 políticos de 26 partidos. O próprio presidente é acusado de ser corrupto. O Ministro da Justiça, aliás, reconheceu publicamente que o indulto mais generoso foi uma decisão pessoal do presidente Temer.

O decreto de indulto é o garrote que estanca a sangria, impedindo novas colaborações premiadas. É o fim da Lava Jato como a conhecemos, uma investigação ágil em constante expansão. Além disso, dá uma saída para os corruptos, criando a expectativa fundada de que cumprirão só 20% da pena. A mensagem que fica é: fraudem licitações, desviem dinheiro da saúde, educação e segurança e encham seus bolsos. Venham, roubem e levem. A temporada da corrupção continua aberta no Brasil. A sangria que acaba, com isso, é a deles. A sangria da sociedade brasileira nossa continua. Fica a esperança de que o Supremo reconheça a inconstitucionalidade desse decreto que protege o criminoso, expõe a sociedade e afronta o povo brasileiro, que está farto de corrupção, mas tem fome e sede de Justiça.

*Deltan Martinazzo Dallagnol é procurador da República e coordenador da força-tarefa Lava Jato no Ministério Público Federal do Paraná