Estratégia de desinformação existe e pode influenciar sua opinião política
Entender de política pode estar mais difícil do que nunca graças a 1) uma enxurrada inédita de informações; 2) a divulgação de inúmeras interpretações sobre um mesmo fato; 3) anúncios contraditórios feitos pela mesma pessoa; 4) as fake news (informações mentirosas divulgadas como se fossem verdade) e 5) a polarização rolando solta. Juntos, esses elementos criam um sistema incerto, uma política de desinformação, que tem na confusão das pessoas --a sua, possivelmente-- como apenas um de seus muitos efeitos colaterais.
Na prática, muitos políticos estão à vontade para criar suas próprias versões dos fatos e da história. Além disso, há pessoas bastante dispostas a acreditar neles e propagar essas “verdades”. E mais: pouco pudor de candidatos e governantes ao “dizer agora o oposto do que eu disse antes”. Esses elementos já existiam, claro, mas nunca na história deste país --nem do mundo-- usaram as redes sociais como motor para bombardear informações de todos os tipos, para todos os públicos, a qualquer hora do dia e da noite.
Disparar uma overdose de notícias e chamar atenção para algum ponto, quando na verdade o que importa é outro, sempre existiu na política. Mas esse maremoto noticioso, agora, conta com o apoio das redes: os seguidores, os bots, os trolls. Trata-se de uma adaptação tecnológica para uma tática política muito antiga
Cristina Tardáguila, diretora da agência Lupa
“Explicando para te confundir”
Considere apenas alguns exemplos recentes, protagonizados por políticos de destaque.
O presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) voltou atrás algumas vezes na formação do governo: da quantidade de ministérios à fusão entre meio ambiente e agricultura, passando pela transferência da embaixada brasileira em Israel para Jerusalém (aqui ele foi, voltou e foi de novo). Também anunciou a uma multidão na avenida Paulista que “esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria” para no dia seguinte dizer que aceita a oposição.
Já Fernando Haddad (PT), logo após chegar ao 2º turno, recuou sobre a criação de uma nova Constituição e descartou a descriminalização das drogas, defendidas até então em seu plano de governo.
Isso, novamente, considerando apenas os anúncios oficiais feitos pelos próprios políticos. Já nas redes sociais –habitat das fake news, onde elas se reproduzem e espalham-- há menos idas e vindas como nos exemplos acima, pois nesse ambiente parece só haver espaço para certezas. Entre pessoas polarizadas, claro.
Exemplos de "certezas": de que o juiz Sergio Moro colocará fim à corrupção; de que Moro condenou Lula para o petista não concorrer à Presidência; de que o Mais Médicos era usado para lavar dinheiro; de que esse programa conseguiu garantir mais saúde aos brasileiros; de que o Escola Sem Partido combate a doutrinação ideológica nas escolas; de que esse projeto leva a censura para a sala de aula.
Hoje em dia o partidarismo é tão importante, que filtra a informação na qual as pessoas acreditam. De certa forma, isso sempre aconteceu, mas o problema é mais sério agora do que era há uma geração
Scott Mainwaring, brasilianista da Universidade Harvard
A afirmação do intelectual norte-americano refere-se ao cenário dos Estados Unidos, mas também se encaixa à realidade brasileira pós-eleições 2018. Brasilianista e autor de “Democracies and Dictatorships in Latin America (democracias e ditaduras na América Latina), Mainwaring considera que a desinformação pode, sim, ser usada como estratégia de comunicação na política, como forma de concretizar o poder e descreditar a oposição.
“As mentiras sempre fizeram parte da política: especialmente, apesar de não exclusivamente, nos regimes autoritários. O senador Daniel Patrick Moynihan [1927-2003] dizia que ‘você tem direito a suas próprias opiniões, mas não aos seus próprios fatos’. A maioria dos regimes autoritários nunca acreditou nisso. Os democráticos, sim. Mas com a fragmentação da mídia e a disseminação de mentiras e desinformação, os políticos e cidadãos se sentiram no direito de criar seus próprios fatos”, conclui Mainwaring. "A história se movimenta em ciclos. E fazemos parte agora de um ciclo no qual as mentiras e desinformação têm muita influência em alguns países."
A estratégia da "mangueira de incêndio"
Polarização e fake news são termos que definitivamente entraram no dia a dia dos brasileiros. No cenário internacional, esses elementos compõem uma estrutura maior de comunicação política, que tem nome complicado: "firehose of falsehood". Na tradução literal, uma mangueira de incêndio, de onde jorram continuamente informações falsas –em bom português, seria algo como política de desinformação.
Essa engrenagem foi descrita em 2016 pela consultoria norte-americana Rand Corporation, que presta serviço ao Departamento de Defesa dos Estados Unidos. O relatório --com subtítulo “por que pode funcionar e as alternativas para contê-la”-- analisa a estratégia de comunicação do governo russo, liderado por Vladimir Putin. A técnica da "firehose of falsehood" consiste em:
- Muito volume e canais diversificados
As informações políticas são produzidas em muito volume, diferentes formatos (texto, vídeo, áudio, imagens) e propagadas de maneiras distintas (ex.: redes sociais, sites, fóruns). A mensagem costuma já levar em conta o ponto de vista de quem vai recebê-la, para confirmar aquilo que a pessoa já pensa. Quando alguém recebe essas mensagens de diferentes fontes, principalmente pessoas conhecidas, são maiores as chances de acreditar na informação.
- Rápido, contínuo, repetitivo
Como essas informações dispensam checagem, podem ser produzidas rapidamente (mesmo baseando-se em notícias recém-divulgadas). Vale também “reciclar” mensagens antigas e postar notícias velhas como sendo novas. A agilidade é importante para “apresentar” a informação (o impacto pode ser positivo para se lembrar dela), e a repetição serve para o receptor considerá-la verdadeira --lembra daquela história que uma mentira repetida muitas vezes vira verdade?
No eleição brasileira deste ano, candidatos (presidenciáveis inclusive) fizeram uso de um sistema de disparo em massa via WhatsApp --a polícia investiga o uso de mensagens para prejudicar os rivais.
- Falta de compromisso com a realidade
Aqui entram as manjadas fake news, que podem ser completamente inventadas ou se basear em algo verdadeiro. “Informações que se conectam com a identidade dos grupos, com narrativas familiares ou aquelas que geram emoções podem ser particularmente convincentes”, diz o relatório da Rand. Mais: “Afirmações têm mais chances de serem aceitas se baseadas em evidências, mesmo que essas evidências sejam falsas”.
- Sem rigor com a consistência
As informações não precisam ser as mesmas: pode haver mudança no tom e até nas versões daquilo que é divulgado. Se a mensagem não for bem recebida, basta descartá-la e encontrar uma nova explicação. Outra possibilidade é culpar o receptor, apontando que ele não entendeu o que foi dito. Os canais de distribuição, apesar de partirem das mesmas fontes, também podem divulgar fatos e eventos diferentes.
Entre os exemplos de contradição do governo russo, o relatório cita diferentes versões oficiais para a queda do avião da Malaysia Airlines, em 2014. Ou o fato de Putin ter negado que os “homens de verde” na Crimeia fossem soldados russos não identificados, para depois confirmar que, sim, claro, eram mesmo soldados de seu exército.
A questão é que esse documento criado nos EUA para analisar a comunicação russa passou a definir, para muitos norte-americanos, parte da estratégia de seu próprio governo, liderado por Donald Trump --o mesmo presidente que disse não acreditar em um relatório sobre mudanças climáticas elaborado por 13 agências federais de seu próprio governo.
Estratégia made in Brazil
O antropólogo e professor da UFSCAR (Universidade Federal de São Carlos) Piero Leirner, que pesquisa hierarquia e antropologia da guerra, explica que esse conceito da mangueira veio como “resposta conceitual” a outro, sobre “guerra híbrida” –este criado em 2015 por Andre Korybko, norte-americano que vive na Rússia.
Ambos conceitos falam sobre um método de propagar um jogo de informações e contrainformações, que no caso do ‘firehosing’ visava manobrar as eleições, e no caso das primaveras árabes [a guerra híbrida] visava desestabilizar os poderes constituídos
Piero Leirner, antropólogo e professor da UFSCAR
Trazendo essas teorias para o cenário político brasileiro, o especialista afirma que desde 2016, ano do impeachment de Dilma Rousseff (PT), vivemos numa espiral da mistura entre firehosing e guerra híbrida –algo que mereceria nome próprio. "O que começou como ‘guerra híbrida’ em 2013 terminou como ‘firehose of falsehood’ em 2018."
Para Leirner, o mais importante neste contexto é não dissociar processos que envolveram protestos, Justiça, operações no legislativo, impeachment e eleições. “Me parece que todos os políticos envolvidos no cenário do impeachment de alguma maneira orbitaram essa estratégia. Ou seja, a maior parte dos partidos no Brasil. A partir daí [do impeachment], todos os desdobramentos políticos que culminaram nas eleições apresentaram um viés.”
Sobre presidente eleito, o antropólogo diz que só será possível analisar a estratégia de governo a partir de 1º de janeiro. “Por enquanto temos uma outra coisa: o bombardeio semiótico de informações contraditórias. Assim, Bolsonaro sempre aparece como produtor final de uma solução de ordem. Agora, quando se está no Estado as coisas são diferentes. Só vale o que está no papel. Se isso vai ou não ser transferido para uma ‘área de comunicação’ do governo é uma incógnita. Se sim, seus efeitos são imprevisíveis.”
Para Cristina Tardáguila, que é também coautora do livro “Você Foi Enganado: Mentiras, Exageros e Contradições dos Últimos Presidentes do Brasil”, ainda não há como saber se as idas e vindas de informações no governo Bolsonaro fazem parte de uma estratégia já definida: “Isso pode partir da equipe do governo ou mesmo da militância que o apoia. A estratégia deles nas redes sociais é impressionantemente forte: um candidato com mínimo de tempo na TV deu um baile na internet durante as eleições”. Recentemente, continua, a agência Lupa passou a classificar um número maior de checagens --não apenas do presidente eleito-- como sendo contraditórias (“a informação contradiz outra difundida pela mesma fonte antes”).
Dá para fechar a mangueira de informações falsas?
Por se tratar de um novo tipo de desafio, ainda não existem respostas definitivas sobre como lidar com ele. As agências de checagem e iniciativas como o UOL Confere são ferramentas, mas Tardáguila aponta para a importância de uma comunhão entre muitos movimentos e setores no combate à desinformação: “Ninguém sozinho vai conseguir resolver isso. Nem o jornalismo, nem a Justiça, nem o Legislativo”.
Opinião parecida com a de Mainwaring, da Universidade Harvard, para quem “a mídia, os educadores, os cientistas e os políticos precisam considerar as verdades e os fatos como sendo um valor primordial”. Ele se diz otimista que isso pode acontecer, apontando a vitória dos democratas na Câmara dos Deputados dos Estados Unidos --segundo ele, uma reação contra o estilo de Trump, presidente que entre outras coisas ataca a imprensa e a noção de verdade.
Leirner, da UFSCAR, dá uma ideia do tamanho desse desafio: “Estamos lidando com informações concorrentes que parecem ter entrado em disputa. Uma coisa é a imprensa, outra a população. Como a ‘população geral’ vai se proteger de algo que ela mesma está ajudando a produzir? Só mesmo uma educação política muito forte blindaria as pessoas desses processos de confusão semiótica. E a imprensa? Ela deveria refletir mais sobre seu papel desde 2013, para daí pensar por que esses novos ‘regimes de verdade’ a colocaram contra a parede”.
Por fim, com a palavra, Christopher Paul, coautor do relatório que cunhou o termo “firehose of falsehood”: “Não tente lutar contra a mangueira de mentiras usando uma pistola de água com verdades. Em vez disso, tente colocar capas de chuva naqueles que serão atingidos por aquilo que sai da mangueira”.
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