MPF mira atos do governo Bolsonaro por contrariar leis e direitos humanos
Nos dois primeiros meses do governo Jair Bolsonaro (PSL), atos do presidente e do segundo escalão do governo entraram na mira do MPF (Ministério Público Federal).
Na PFDC (Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão), setor do MPF que cuida da proteção dos direitos humanos e de direitos como saúde e educação, já foram quatro os pedidos para que a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, apresente ações judiciais contra medidas do governo.
Para a PFDC, são inconstitucionais a flexibilização da posse de armas, a possibilidade do monitoramento de ONGs, a extinção do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar), órgão de combate à fome, e a ampliação das autoridades que podem decretar sigilo sobre informações públicas.
Nesses casos, a procuradoria pede que Raquel Dodge apresente ações de inconstitucionalidade ao STF (Supremo Tribunal Federal) contra as propostas. Apenas a procuradora-geral pode apresentar ações judiciais desse tipo.
Procurada, a assessoria de Dodge afirmou que os pedidos estão sendo analisados.
Em outra frente de atuação, a PFDC enviou duas representações pedindo a revogação de medidas ou cobrando explicações sobre a legalidade de atos do governo. Foram questionados o rompimento do diálogo do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) com o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e a carta do Ministério da Educação às escolas pedindo que crianças fossem filmadas cantando o hino.
O MPF, por meio da sua Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais, também emitiu uma nota técnica afirmando serem inconstitucionais as mudanças na política de demarcação de terras e direitos indígenas. A questão já é alvo de uma ação no STF movida pelo PSB.
O QUE DIZ O GOVERNO BOLSONARO
O governo já recuou em parte das medidas contestadas.
O ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, por exemplo, desistiu de pedir que diretores de escolas gravem e encaminhem ao governo vídeos de alunos cantando o Hino Nacional. O ministro também já havia chamado de "erro" sua decisão de incluir o slogan de campanha de Bolsonaro na carta a escolas de todo o país.
Na quarta-feira (27), o presidente Jair Bolsonaro revogou o decreto que alterou a regulamentação da LAI (Lei de Acesso à Informação) e ampliou o número de autoridades que poderiam decretar sigilo sobre dados do governo. A ampliação foi criticada como uma forma de dar menos transparência aos atos do governo e dificultar o combate à corrupção.
Veja os argumentos do MPF e o que diz o governo.
Terras indígenas
Ontem, o MPF emitiu uma nota técnica na qual afirma ser inconstitucionais as alterações na política de demarcação de terras e direitos indígenas promovidas pelo governo Bolsonaro.
O documento é assinado pela Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do MPF e critica a transferência das demarcações indígenas para o Ministério da Agricultura e as mudanças na Funai (Fundação Nacional do Índio), que deixou a órbita do Ministério da Justiça e passou a ser vinculada ao novo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos.
As mudanças foram promovidas pela medida provisória que reorganizou a estrutura dos ministérios, assinada por Bolsonaro no primeiro dia de governo.
"A Medida Provisória 870/19, ao transferir a demarcação das terras indígenas ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e a supervisão da Funai para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos operou a repristinação [restauração] da velha política integracionista do direito antigo e obrigou os índios e suas comunidades a um falso tratamento isonômico em relação aos demais atores da sociedade brasileira, tratamento este que desconsidera e viola, a um só tempo, suas peculiaridades culturais e seus direitos constitucionais", diz trecho da nota técnica.
O presidente da Funai, Franklimberg de Freitas, tem afirmado que as mudanças tiveram o objetivo de "aperfeiçoar" o processo de demarcação e que o governo tem um compromisso com os direitos indígenas.
"O objetivo do governo é aperfeiçoar o processo de identificação, demarcação e delimitação de terras indígenas e acelerar o processo de licenciamento ambiental", disse. "Gostaria de ratificar o compromisso nosso da Funai com os nossos povos indígenas", afirmou Freitas, em evento de janeiro, na sede do MPF.
DECRETO FACILITA POSSE DE ARMAS
Uma das primeiras medidas do governo Bolsonaro foi a publicação do decreto que facilita a posse de arma no país. O texto permite que moradores da zona rural e de todas as cidades brasileiras possam pleitear à Polícia Federal a autorização para manter uma arma de fogo em casa.
Antes, para ter a posse autorizada, era necessário provar a "efetiva necessidade" do armamento para a própria segurança. Agora, o decreto do governo diz que, por morarem em áreas com elevado índice de criminalidade, qualquer cidadão do país se enquadra no critério de "efetiva necessidade". Porém, ainda é preciso cumprir outros requisitos, como não ter antecedentes criminais.
O decreto foi alvo de uma representação da PFDC a Dodge para que ela conteste a legalidade do texto no STF por meio de uma ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental).
A representação afirma que esse tipo de alteração só poderia ser feito por meio de lei aprovada pelo Congresso Nacional e que o texto editado por Bolsonaro contraria os objetivos do Estatuto do Desarmamento, lei federal de 2003.
"Um decreto não pode alterar o objetivo da norma legal, bem como ampliar ou reduzir sua abrangência", diz o documento enviado à PGR (Procuradoria-Geral da República), assinado pela chefe da PFDC, a subprocuradora-geral da República Deborah Duprat.
"A referida lei instituiu um sistema de permissividade restrita de posse de armas, e o decreto pretende alterar substancialmente essa orientação, para um modelo de elegibilidade geral à posse de armas de fogo", diz a representação da PFDC.
Ao assinar o decreto, Bolsonaro disse que a população, no referendo de 2005, havia decidido "soberanamente" sobre a questão, ao votar pela manutenção da legalidade do comércio de armas de fogo e munição no país.
"Para lhes garantir esse legitimo direito à defesa, eu, como presidente, vou usar esta arma", disse, exibindo uma caneta esferográfica.
A flexibilização da posse de armas no país foi uma das principais promessas de campanha de Bolsonaro. Ela não tem relação com o porte de armas, que é o direito de o indivíduo andar armado pelas ruas. A posse, por sua vez, é a autorização para manter uma arma em casa ou no trabalho, desde que o proprietário seja o responsável legal pelo local.
EXTINÇÃO DE ÓRGÃO CONTRA A FOME
Na medida provisória que reestruturou os ministérios, assinada no primeiro dia do governo Bolsonaro, foi extinto o Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar).
O órgão era composto por representantes do governo e da sociedade civil e prestava assessoramento ao presidente em assuntos ligados ao combate à fome, além de propor as diretrizes de atuação nessa área, como no uso de agrotóxicos no campo.
Após extinguir o conselho, o governo colocou a responsabilidade pela política nacional de segurança alimentar sob o recém-criado Ministério da Cidadania.
Segundo o ministério, as atribuições do Consea foram mantidas, agora sob a responsabilidade da pasta, e "a partir dessa forma de organização a entrega governamental se tornará mais célere", diz nota enviada pela assessoria.
Para a procuradora Deborah Duprat, da PFDC, a extinção do Consea desorganizou o Sistema Nacional de Segurança Alimentar, instituído por uma lei federal, e pode provocar retrocesso no combate à fome. Duprat afirma que a medida contraria a Constituição Federal, que fixa como objetivos a "erradicação da pobreza" e a "redução das desigualdades sociais", além de garantir o direito à alimentação.
A PFDC pediu que Raquel Dodge apresente uma Ação Direta da Inconstitucionalidade ao STF questionando a extinção do conselho.
MONITORAMENTO DE ONGS
Para a PFDC, também seria inconstitucional a iniciativa do governo Bolsonaro de "supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar" a atuação de organizações da sociedade civil, como ONGs (Organizações Não Governamentais) e associações.
Em 1º de janeiro, via medida provisória, Bolsonaro incluiu o monitoramento dessas entidades entre as atribuições da Secretaria de Governo, comandada pelo general Carlos Alberto dos Santos Cruz.
A procuradoria sustenta que a Constituição Federal proíbe a interferência do governo no funcionamento dessas organizações e afirma que sua criação não depende de autorização. Nesse caso também foi enviada uma representação à procuradora-geral pedindo que seja apresentada ao STF uma ação questionando a legalidade da medida.
No documento, a procuradora Deborah Duprat afirma que "não há liberdade de associação quando o poder público intervém na sua administração ou funcionamento" e que a medida "excede, em muito, as possibilidades de intervenção estatal nas organizações da sociedade civil".
Em entrevista à BBC, o general Santos Cruz afirmou que a intenção do governo não é intervir no funcionamento das organizações, mas "coordenar" o uso de recursos públicos repassados às organizações com o objetivo de obter "melhores resultados" nas políticas públicas.
RELAÇÃO COM O MST
A PFDC também recomendou, sob pena de ações judiciais, que o Incra revogue o memorando que orientou os chefes do órgão a não receber representantes de entidades "que não possuem personalidade jurídica", como é o caso do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), e "invasores de terras".
Na prática, o documento do Incra formaliza o rompimento do diálogo com o MST.
Para os procuradores da PFDC que atuam no Grupo de Trabalho da Reforma Agrária, a orientação do Incra pode acirrar a tensão no campo.
"Os potenciais beneficiários da política nacional de reforma agrária não podem ser prejudicados ou discriminados por cumprirem dois desígnios constitucionais: buscar a reforma agrária e se associarem livremente para tal fim", diz o documento, assinado por cinco procuradores da PFDC e pela chefe do órgão.
O Incra informou que a recomendação da PFDC está sendo "discutida internamente" e que a direção do órgão não iria se manifestar sobre o assunto.
AMPLIAÇÃO DO SIGILO
O decreto que ampliou o número de autoridades que podem decretar sigilo sobre informações públicas, hoje já revogado por Bolsonaro, também foi taxado de inconstitucional pela PFDC.
Antes da revogação, em mais um pedido para que a PGR questionasse o decreto no STF, a PFDC afirmou que as alterações "violaram diretamente os princípios democrático e republicano, que se interpelam e se confundem em suas dimensões de participação, transparência e controle da gestão pública", diz o documento assinado por Duprat.
O vice-presidente Hamilton Mourão (PRTB), responsável pela assinatura do decreto num momento em que substitui temporariamente Bolsonaro na Presidência, chegou a defender o texto e disse que a medida iria reduzir a "burocracia" na análise das informações do governo.
HINO NAS ESCOLAS
A PFDC também cobrou explicações do Ministério da Educação sobre a mensagem enviada pelo ministro Vélez Rodriguez pedindo que os alunos de escolas de todo o país fossem filmados cantando o Hino Nacional.
A mensagem de Vélez propunha aos diretores das escolas a leitura de uma carta com uma mensagem do ministro aos estudantes. O texto assinado por Vélez finalizava com o slogan da campanha eleitoral do presidente Bolsonaro: "Brasil acima de tudo. Deus acima de todos".
Para a procuradoria, o vídeo dos alunos poderia ferir a proteção à imagem das crianças garantida pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), e o uso do bordão de campanha numa comunicação oficial do governo poderia caracterizar um ato de improbidade administrativa.
O ministro recuou da ideia de filmar os estudantes e retirou o slogan eleitoral da mensagem enviada às escolas.
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