Como ministro ou vítima, Moro não poderia ter acesso a inquérito de hackers
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, não pode ter acesso às informações do inquérito que apura suspeitas de ataques ao perfil no Telegram de autoridades públicas. Apesar de o próprio ministro figurar entre as vítimas do ataque, e de a Polícia Federal ser administrativamente subordinada à pasta da Justiça, nenhuma das duas circunstâncias dá a ele permissão de acesso às investigações.
Essa é a opinião do presidente da ADPF (Associação Nacional dos Delegados da Polícia Federal), Edvandir Felix de Paiva, e do advogado e professor de direito penal da USP (Universidade de São Paulo) Gustavo Badaró.
Na terça-feira (23), a PF prendeu quatro suspeitos. As investigações levaram ao nome de outras autoridades que podem ter sido alvo do grupo, como o presidente da República Jair Bolsonaro (PSL) e o presidente do STJ (Superior Tribunal de Justiça), ministro João Otávio de Noronha.
Ontem, Moro ligou para algumas dessas autoridades para avisar que elas podem ter sido vítimas de hackers e informou que as mensagens capturadas seriam destruídas. A PF, em seguida, divulgou nota dizendo que todo o conteúdo será preservado até que a investigação seja concluída, e que o futuro das mensagens dependerá de uma decisão da justiça.
Hoje, o Ministério da Justiça informou à reportagem do UOL que Moro não possui acesso ao inquérito e que a decisão de alertar algumas autoridades públicas foi tomada por questões de segurança nacional. Não explicou, porém, de onde partiu a informação de que essas personalidades avisadas estariam entre os celulares atacados.
"O Ministério da Justiça não tem acesso ao inquérito. Considerando informação de que altas autoridades da República, como o Presidente da República, estavam entre os hackeados, decidiu-se comunicar preventivamente algumas delas por questão de segurança nacional, sem qualquer exposição de dados sensíveis da investigação", diz a nota enviada à reportagem.
Ontem, foi o Ministério da Justiça quem divulgou que Jair Bolsonaro foi hackeado. E, segundo a assessoria de Noronha, foi Moro que o comunicou.
Acesso de ministro "contraria boas práticas"
O presidente da ADPF, Edvandir Paiva, afirma que a possibilidade de acesso do ministro da Justiça a dados de investigações em andamento contraria as boas práticas de investigação e causa "incômodo" entre os policiais.
Em tese, o ministro da Justiça só deve saber de alguma investigação no dia da operação, até para que ele se prepare durante o dia. Mas sem saber de grandes detalhes, sem nenhuma informação que possa colocar em risco a investigação
Edvandir Felix de Paiva, presidente da ADPF
"Na polícia existe uma doutrina sobre compartimentação [de informações] que só sabe da investigação quem precisa saber. Qualquer pessoa fora desse âmbito não deveria saber nada de investigações em andamento, e nisso se enquadra o ministro da Justiça", afirma o delegado.
O advogado e professor de direito penal da USP Gustavo Badaró reforça que apenas as partes responsáveis por um inquérito policial, como policiais, membros do Ministério Público e juízes, podem ter acesso às investigações.
Segundo Badaró, até mesmo os alvos da investigação só podem ter acesso às diligências já realizadas, como mandados de busca já executados, segundo entendimento do STF (Supremo Tribunal Federal).
"Quem pode ter acesso é a autoridade policial, o Ministério Público, os investigados, em relação às diligências que já tenham sido cumpridas, e o juiz, caso haja requerimento de alguma diligência", ele afirma.
Ontem, um ministro do STF afirmou à reportagem do UOL, sob a condição de ter seu nome preservado, que Moro não deveria ter acesso a informações da investigação, como o nome das vítimas, por se tratar de um inquérito sigiloso. Hoje pela manhã, o ex-juiz federal rebateu as críticas e disse que ele não possui uma "lista" com todos os alvos dos hackers e estaria apenas "comunicando" algumas autoridades atacadas.
Possível crime de vazamento
Gustavo Badaró sustenta que, em tese, se alguém forneceu dados da investigação ao ministro Sergio Moro, pode ter cometido o crime de violação de sigilo.
"Era o caso de se indagar quem lhe deu essas informações, porque quem deu essas informações ao ministro Segio Moro cometeu o crime de violação de sigilo profissional
Gustavo Badaró, professor de direito penal
Apesar de a Polícia Federal estar ligada administrativamente ao Ministério da Justiça, o ministro não tem o poder de interferir nas investigações ou ter acesso a dados sigilosos.
"Em nenhuma circunstância ele tem acesso a um inquérito. Se fosse assim, em última análise o presidente da República teria acesso, porque ele é o chefe do ministro da Justiça. A questão não é quem é chefe de quem, mas a quem as leis atribuem essas funções", diz Badaró.
Fato de ser vítima só permitiria acesso restrito
Para o presidente da ADPF, o fato de Moro ter sido vítima de uma tentativa de invasão hacker a seu celular também não lhe dá nenhum direto especial de ter acesso ao inquérito. Segundo Paiva, as vítimas de crime só podem ter acesso ao conteúdo da investigação quando o inquérito tem seu sigilo retirado pelo Judiciário.
"E ainda que fosse um caso em que o juiz da causa e o delegado de polícia decidem que é necessário comunicar as vítimas, para que elas tomem alguma atitude, ainda assim, isso deveria ser feito de maneira oficial, uniforme, um comunicado único encaminhado para as vítimas, teria que ser algo dessa natureza", diz o delegado.
O professor da USP Gustavo Badaró afirma que as vítimas de crime até poderiam pedir ao delegado acesso às investigações, mas isso só poderia ser fornecido de forma limitada aos dados relativos ao crime sofrido por aquela pessoa, e não de forma ampla.
"Mas não me parece que foi isso que aconteceu. O que parece que aconteceu é que o Moro informou pessoas que nem sequer sabiam que foram vítimas", diz Badaró.
Postura de Moro "incomoda bastante" a PF
Para o presidente da ADPF, o telefonema de Moro para avisar autoridades que elas podem ter sido hackeadas "incomoda bastante", por indicar que o ministro pode ter tido acesso a dados da investigação.
Nós também estranhamos o ministro saber quem são as vítimas, ou parte das vítimas, e estar ligando pra elas. Não sei se [o nome de] vítimas que não sejam autoridades públicas foram repassadas a ele. No nosso entendimento da doutrina policial, dos delegados de polícia, incomoda bastante
Edvandir Felix de Paiva
"O incômodo seria com qualquer autoridade que tivesse se manifestado sobre investigação em andamento. O ponto é que investigações em andamento não devem ser comentadas nem divulgadas, em nenhum aspecto dela, por qualquer autoridade, a não ser com autorização do juiz da causa", afirma Paiva.
Um dos pontos incômodos da atitude de Moro, segundo o presidente da ADPF, seria passar a impressão de que o ministro teria algum tipo de ascendência sobre as investigações.
"Fica parecendo que o ministro tem ingerência nas investigações da Polícia Federal, e pelo que sei não tem e nem deveria ter", afirma o delegado.
"Toda vez que uma pessoa que não faz parte da investigação fica falando de dados da investigação vai dar problema, porque o sigilo da investigação é muito importante", diz Paiva.
O que diz a PF
Procurada pela reportagem do UOL para esclarecer em quais circunstâncias ocorreu o acesso de Moro aos nomes de algumas das vítimas dos hackers, a Polícia Federal disse que não poderia comentar o caso, por se tratar de uma investigação ainda em andamento.
"A Polícia Federal não se manifesta sobre investigações em andamento. As informações disponíveis são as publicadas na nota oficial sobre a operação e as transmitidas durante atendimento à imprensa realizado em 24 de julho na sede do Instituto Nacional de Criminalística", diz nota enviada pela PF.
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