Opinião: Cumprir a Constituição, simples assim
É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos
Fernando Pessoa
Quando, no dia 1º de setembro de 2016, assumi a tribuna do Supremo Tribunal Federal para defender a tese exposta na ADC 43, ainda no julgamento da liminar, representava um partido político, o PEN, pois era necessária legitimidade para ajuizar ação direta de constitucionalidade.
A defesa era simples: o cumprimento da Constituição Federal, no que diz respeito à clausula pétrea prevista no art. 5º, inciso LVII/CF, que reza que a prisão somente se dará após o trânsito em julgado.
Recentemente, em 17 de outubro, assumi a mesma tribuna sagrada, também na ADC 43, como "amicus curiae" numa ação onde fui advogado do autor. Algo inusitado. Senti-me na obrigação de explicar tal situação à corte e às pessoas que acompanhavam o julgamento.
Tive que me habilitar como "amicus curiae", em nome do Instituto de Garantias Penais (IGP) numa ação onde havia sido o advogado do autor, talvez pela primeira vez no Supremo Tribunal Federal, porque quando o atual presidente da República decidiu se candidatar, escolheu o Partido Ecológico Nacional para se filiar. No momento da pretensa filiação, e quem me relatou foi o próprio presidente do PEN, o então candidato à presidência da República impôs duas condições: (1) que houvesse a desistência da ação direta de constitucionalidade e (2) que eu fosse destituído da ação.
Como ressaltei da tribuna, foi a primeira destituição em 40 anos de advocacia e esta muito me honrou, pois, o autor da ideia da destituição defende, como é sabido, não somente a prisão logo após decisão em segundo grau, mas até mesmo o direito de matar, quando defende a excludente de ilicitude.
Estava, ao defender na tribuna a presunção de inocência, no lugar onde sempre estive, ou seja, na defesa da Constituição Federal, tanto na minha defesa em nome do autor da ADC 43 como na defesa como "amicus curiae" em nome do IGP. Algo inusual, no entanto, ocorria ali naquele momento e não passou despercebido ao grande advogado Miguel Pereira Neto ao fazer, na manhã de hoje, a sua sustentação oral em nome do Amicus Curiae IASP.
Após a tentativa frustrada do PEN de desistir da ADC 43, não sabiam o então candidato à Presidência da República e também o presidente do partido que a ação direta de constitucionalidade é indisponível, ou seja, não é passível de desistência. Optaram então por substituir o advogado para o julgamento do mérito da ADC 43.
Em sua sustentação no dia 17 de outubro, o novo advogado escolhido ousou fazer uma defesa contrária à tese exposta na ADC 43!!! Sustentou a constitucionalidade da prisão antes do trânsito em julgado.
Talvez essa seja a prova mais flagrante de que a Constituição Federal não pode se sujeitar ao livre arbítrio do julgador, decidindo contra a literalidade do texto constitucional, em função de conjecturas do momento político. Não se pode fundar o voto permitindo interpretações livres a serem dadas às cláusulas pétreas que possuem sentido literal. O decisionismo é uma grave disfunção do sistema constitucional.
Ora, naquele momento em que ajuizei a ADC 43, a primeira a ser distribuída, existia uma discussão, que continua até hoje e interessa a todos, se pode o intérprete da Constituição julgar de acordo com as conveniências políticas e de momento e simplesmente abandonar a intenção literal do constituinte que promulgou a constituição.
A ADC 43 foi politizada e a discussão saiu do trilho puramente constitucional. Quando o Judiciário, ao se engajar em cruzadas contra a corrupção, relativiza os limites textuais da Constituição e das leis, agrava a crise da democracia.
Rigorosamente, a postura adotada pelo atual advogado do autor da ADC 43 leva a essa reflexão. O que mudou foram os ares políticos, como dito da tribuna. A Constituição Federal não mudou. A interpretação da cláusula pétrea tem que ser a mesma.
A ousadia de tentar fazer uma defesa diferente do pedido exposto no texto da ADC 43, referendado na ADC 44 pelo grande advogado Juliano Breda e também na ADC 54 com o brilhantismo dos Professores Celso Antonio Bandeira de Melo e Geraldo Prado, dentre outros, não pode ser objeto de mudanças ocasionais. Os processos judiciais não podem ser encarados como instrumentos de reformas sociais.
Ou seja, mesmo com o meu afastamento como patrono da ADC 43, a tese tem que continuar exatamente a mesma. É impossível desistir da tese, que é a defesa da Constituição Federal. Disse da tribuna, e repito, que a presença dos inúmeros amici curiae fez com que fosse consolidada de forma indelével a importância da tese, especialmente com a presença da Defensoria Pública.
Mas o que no fundo marca é que não se pode interpretar a Constituição Federal ao sabor dos tempos, pela posição política de um determinado momento. Isso é fundamental para que tenhamos a tão almejada segurança jurídica.
Hoje, alguns órgãos de imprensa e boa parte da população defendem que deve prevalecer essa opção de interpretação da Constituição Federal que possibilita a prisão após decisão de segunda instância, contrário ao texto literal expresso no art. 5º inciso LVII da Constituição Federal, que diz que a prisão somente deve se dar após o trânsito em julgado, talvez por acreditarem que seja necessária tal interpretação para a manutenção das prisões de vinte ou trinta empresários e políticos.
A reflexão que se impõe é que, se dermos ao Supremo Tribunal Federal o poder de interpretar livremente um texto constitucional absolutamente claro, estaremos também dando liberdade para que amanhã a Suprema Corte possa afastar cláusulas pétreas do mesmo patamar constitucional, como a liberdade de pensamento, a liberdade de comunicação e até mesmo o direito à propriedade privada.
Temos que ter essa reflexão para entender a importância desse julgamento. É claro que a importância fundamental está em manter a presunção de inocência e defender a liberdade, o bem maior previsto na Constituição Federal. Como dizia Cervantes, na voz de Don Quixote, "pela liberdade, Sancho, da mesma forma que pela honra, se deve arriscar a vida".
Quando disse na tribuna que o Supremo Tribunal Federal pode muito, mas não pode tudo, porque nenhum poder no Estado democrático de Direito pode tudo, o fiz com o sempre devido respeito a cada um dos ministros e, principalmente, à corte, onde atuo há quase 40 anos.
É bom que seja assim: que possamos viver num Estado democrático onde os poderes representam uma estabilidade necessária para que o país possa dar uma garantia aos seus cidadãos. O Supremo Tribunal Federal é o guardião da Constituição Federal, mas não é o seu dono. Cumprir a Constituição é algo que compete tanto ao ministro do Supremo Tribunal Federal quanto ao juiz do interior de Minas Gerais bem como a qualquer cidadão que queira contribuir para a estabilidade da democracia.
Discordo da interpretação corriqueira de que hoje existem 11 Supremos, pois cada ministro seria uma ilha que não se comunica com os demais. Se isso fosse verdade, teríamos que admitir que existem 11 Constituições a reger o país.
Como cidadão, como advogado, entendo que compete a cada um de nós perfilhar ao lado da Constituição Federal. O cumprimento da Constituição pura e simplesmente fará com que tenhamos a almejada segurança jurídica.
*Antonio Carlos de Almeida Castro, conhecido como Kakay, é advogado criminal, defensor de réus da Lava Jato
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