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Militares expressam crescente desconforto com governo Bolsonaro

Presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em Brasília -
Presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em Brasília

Simone Iglesias, Samy Adghirni e Andrew Rosati

Da Bloomberg

31/07/2020 14h10Atualizada em 31/07/2020 18h50

Resumo da notícia

  • Generais de alto escalão da ativa e da reserva se preocupam com o comportamento errático do presidente
  • Há temor de que crise na saúde gerada por gestão da pandemia afete imagem dos militares junto à opinião pública, aumentando pressão sobre Pazuello
  • Após seis meses no governo, general Carlos Alberto dos Santos Cruz está entre os oficiais graduados que expressam abertamente um crescente desconforto
  • Mais de um terço dos ministérios são formados por militares, que têm maior peso que em outras gestões

A dependência do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) das Forças Armadas para governar começa a incomodar os próprios militares.

Entrevistas com vários generais do alto escalão da ativa e da reserva mostram que integrantes das Forças Armadas, que inicialmente viam a participação no governo Bolsonaro como uma chance de moldar a política depois de anos à margem das decisões de poder, agora se preocupam com o comportamento errático do presidente.

E a crise de saúde causada pela pandemia de coronavírus ameaça afetar a imagem dos militares junto à opinião pública. Embora as Forças Armadas como instituição não estejam nem perto de romper com o governo, há um crescente desconforto entre as fileiras, inclusive entre integrantes do próprio governo Bolsonaro.

"Ter militares no governo não pode ser confundido com ter o apoio institucional das Forças Armadas", disse o general da reserva Sérgio Etchegoyen, que foi ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) do governo de Michel Temer. "Essa falta de entendimento gera incômodo e há uma preocupação em manter uma distância fitossanitária do governo", afirmou em entrevista.

Mais de um terço do ministério de Bolsonaro é formado por militares, cujo peso no atual governo é maior do que em qualquer outro momento desde o fim da ditadura.

A Presidência da República não quis se pronunciar sobre esta reportagem.

Militares da ativa e da reserva, alguns dos quais pediram anonimato, dizem que a principal preocupação é que os fortes laços com Bolsonaro possam manchar a imagem de guardiões da democracia cuidadosamente reconstruída.

As Forças Armadas são constantemente citadas como uma das instituições mais confiáveis e populares do país, segundo pesquisas do Datafolha. Os militares conduzem missões de paz no exterior, participam de projetos de infraestrutura, fazem operações de combate à violência e garantem a segurança de grandes eventos.

Um papel fundamental que muitos oficiais do Exército desempenham agora é tentar aliviar a tensão causada por algumas das medidas mais polêmicas de Bolsonaro e buscar alianças políticas estratégicas.

Quando investidores estrangeiros ameaçaram em julho cortar investimentos se a Amazônia não fosse protegida contra queimadas e extração ilegal de madeira, coube ao vice-presidente Hamilton Mourão, general da reserva, prometer combate ao desmatamento.

Mal-estar crescente

O general Carlos Alberto dos Santos Cruz está entre os oficiais graduados que expressam abertamente um crescente desconforto com as medidas mais extremas do governo. Santos Cruz serviu por quase 50 anos no Exército e liderou missões de manutenção da paz no Haiti e na África, mas durou apenas seis meses no governo Bolsonaro.

Ele foi demitido no ano passado do cargo de ministro da Secretaria de Governo da Presidência por entrar em confronto com os filhos do presidente e pedir moderação. "O estilo do presidente, a maneira de governar com grupos ideológicos radicais acabam arrastando a imagem do Exército para [um desgaste]."

"As Forças Armadas têm prestígio muito alto perante a sociedade e participar do governo transfere esse prestígio para o governo", disse Santos Cruz em entrevista. "E vice-versa, as Forças Armadas correm risco de ser vistas como responsáveis pelos fracassos do governo."

O Ministério da Saúde se transformou em um ponto central neste debate. Alguns oficiais temem que a resposta do governo à pandemia de coronavírus já não possa ser corrigida.

O general Eduardo Pazuello assumiu o ministério interinamente em meados de maio, depois da demissão de Luiz Henrique Mandetta, que defendeu quarentenas logo no início da pandemia. Nelson Teich, substituto de Mandetta, renunciou depois de apenas 29 dias por se recusar a liberar o uso da cloroquina.

Uma vez no comando, Pazuello rapidamente recomendou o polêmico medicamento contra a malária e voltou atrás nos pedidos de quarentena. Nos meses seguintes, Pazuello também nomeou pelo menos nove militares para cargos antes ocupados por especialistas em saúde, elevando o total para pelo menos 20 no ministério.

Distanciamento

Raul Jungmann, que foi ministro da Defesa no governo de Michel Temer, disse que o papel de Pazuello à frente da batalha contra o coronavírus sendo um general da ativa está causando "desgaste e tensão" entre as fileiras.

Outros generais exigem que Pazuello assuma um cargo da reserva ou deixe o ministério, segundo entrevistas com oficiais. O vice-presidente Mourão, em entrevista ao UOL em 15 de julho, deu a entender que Bolsonaro poderia substituí-lo.

"O Exército está lutando contra a retaguarda para desvincular sua imagem do governo Bolsonaro", disse Octavio Amorim Neto, cientista político especializado em relações civil-militares. "Quando a pandemia chegou, eles começaram a ver sua aventura de retornar ao centro da política como extremamente custosa."

O Ministério da Saúde não respondeu a pedidos de comentário.

Alguns dos comandantes da ativa também negaram a intenção de criar divisões no governo ou que os militares tenham qualquer intenção de tomar o poder.

"As Forças Armadas, por serem instituições de Estado, dão suporte ao atual governo como foi feito em todos os governos anteriores, quando socorriam as emergências e ajudavam sempre que necessário", disse o ministro da Defesa, general da reserva Fernando Azevedo, em entrevista por e-mail.

Facções "radicais"

A busca de apoio dos militares ao assumir o poder era um processo natural para Bolsonaro, disse o general da reserva Paulo Chagas, que apoiou o presidente na campanha de 2018.

Sem um partido político forte e inicialmente desdenhado pela elite empresarial e intelectual do país, Bolsonaro apelou para os colegas de farda para ajudá-lo a governar.

"Bolsonaro se deu conta de que não estava preparado para a função de presidente. Ele tinha prestígio político, mas não tinha embasamento cultural para encarar esse desafio", disse Chagas. "Aí ele pediu ajuda às pessoas nas quais sabia que podia confiar: os companheiros militares."

No final, as Forças Armadas, que esperavam estabelecer um curso estável para o governo Bolsonaro, foram mobilizadas para "resolver problemas das facções mais radicais de Bolsonaro", disse Amorim Neto, especialista em relações civil-militares da Fundação Getulio Vargas.

"A sociedade não consegue entender quem está governando e quem está servindo nas Forças Armadas", disse a deputada federal Perpétua Almeida (PCdoB-AC). "A pessoa responsável por essa confusão é o presidente Bolsonaro."

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