WhatsApp bolsonarista: pandemia e Centrão são acertos do "mito" repaginado
O Brasil ultrapassa a marca de 100 mil mortos por covid-19, o assessor Fabrício Queiroz está preso, as investigações sobre o esquema de "rachadinhas" se aproximam do gabinete do ex-capitão, o antes execrado Centrão é hoje o fiador do governo, o desemprego é recorde, o ídolo Donald Trump periga perder a eleição. No entanto, Jair Bolsonaro está com a melhor avaliação desde o início do mandato, informa o Datafolha.
O auxílio emergencial, que chega a 40% da população (75% entre os desempregados), explicaria a subida entre os mais vulneráveis, estrato demográfico de grande peso na população. No entanto, há movimentos mais silenciosos a apontar para uma "repaginação" na imagem do presidente.
O WhatsApp bolsonarista traz indícios dessa mudança. Espécie de acervo de material de propaganda pró-presidente, os grupos públicos do aplicativo concentram os militantes mais fiéis, responsáveis por distribuir conteúdo para a "base" da pirâmide —grupos particulares de família, amigos, trabalho etc., que incluem um público mais amplo: gente que apoia Bolsonaro, moderados e opositores. A "tia do Zap" que polemiza nos grupos de parentes mora aqui.
Há mudanças em curso na comunicação dos grupos militantes. O "banho de loja" da imagem presidencial aponta em duas direções. A primeira é a tentativa de conciliar a cooptação fisiológica do Centrão com o discurso antissistema. Os movimentos de Bolsonaro são apresentados como "estratégicos", como exemplifica a postagem abaixo:
Na mesma linha, deputados e senadores da tropa de choque são criticados. Com seu tom polêmico bem ao gosto das redes sociais, "mais atrapalham do que ajudam" e "caminham na sombra" do presidente:
Curiosamente, postagens dos parlamentares mais estridentes são campeãs de compartilhamento nos grupos militantes. A contradição é apenas aparente.
Estudos das antropólogas Isabela Oliveira Kalil, da Fepesp, e Letícia Cesarino, da UFSC, ressaltam o caráter "fractal" da comunicação bolsonarista. O conteúdo que circula no WhatsApp da militância "desce" para os grupos particulares de forma segmentada. Cada parcela da população que apoia o presidente possui, assim, uma imagem diferente do ex-capitão. Kalil identifica 16 segmentos, de mães de direita a monarquistas, de gamers a militares, de fiéis religiosos a "isentões", cada um com sua representação mental particular de Bolsonaro.
A segunda linha discursiva diz respeito à pandemia. Com malabarismos retóricos e muita desinformação, tenta-se passar a conta dos 100 mil óbitos ao isolamento social, caracterizado como "experimento chinês" encampado pela Organização Mundial da Saúde. O argumento é de que Bolsonaro estava certo no enfrentamento ao coronavírus. Mortes e desemprego seriam responsabilidade de "governadores e prefeitos assassinos". Com a defesa da hidroxicloroquina, Bolsonaro tenta "salvar o restante da população":
A trajetória da pandemia no país tende a fazer a tese ganhar tração. A manutenção do elevado número de mortes diárias e o cansaço da população diante do confinamento reforçam o sentimento de que "é preciso tocar a vida", como defende o presidente. Incompreensões sobre o significado de isolamento social também ajudam.
O bolsonarismo argumenta que o confinamento fracassou. No entanto, há consenso de que ações de lockdown foram tímidas no Brasil, prevalecendo um cenário de "porta entreaberta", na definição de Wanderson Oliveira, ex-secretário nacional de Vigilância em Saúde. Muito por conta das sucessivas sabotagens presidenciais.
O elo de ligação entre o antigo e o novo Bolsonaro é o carisma. Como lembra o cientista político André Singer em entrevista ao jornal "O Globo", na definição de Max Weber o carisma é a crença na posse de dons extraordinários. Não por acaso o presidente é chamado de "mito" por seus apoiadores. Sua presença é vendida como motivo de júbilo popular:
* Rodrigo Ratier é colunista de Ecoa
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