Novo Bolsa Família prevê substituir verba de creches públicas por voucher
O projeto de reformulação do Bolsa Família, prestes a ser lançado pelo governo Jair Bolsonaro (sem partido), prevê acabar com as verbas destinadas à ampliação de creches públicas para crianças em situação de vulnerabilidade social.
No lugar, o governo pretende criar um voucher mensal de R$ 250 para creches privadas que só beneficiará famílias que deixem o programa social. A informação consta na minuta da MP (Medida Provisória) que cria o novo Bolsa Família, obtida com exclusividade pelo UOL.
Um dos principais pontos da proposta é a extinção do programa Brasil Carinhoso. Criado no governo Dilma Rousseff, ele financia a expansão de vagas de creche focadas em crianças de famílias beneficiárias do Bolsa Família e do BPC (Benefício de Prestação Continuada) ou para crianças de famílias que tenham pessoas com deficiência.
Formalmente, o voucher —uma espécie de cupom/cheque para contratação de serviço específico na iniciativa privada— foi batizado como Auxílio Creche e serviria como a "porta de saída" do Bolsa Família, expressão sempre repetida por integrantes do governo Bolsonaro.
Na última quinta-feira (13), Bolsonaro fez menção ao texto da MP durante agenda em Alagoas.
"Está quase pronta também a questão do novo Bolsa Família, proposta sua. E mais: brevemente a inclusão no Bolsa Família não será mais procurando prefeituras pelo Brasil, será feito através de um aplicativo. Vamos libertar as pessoas mais humildes do jugo de quem quer que seja", disse Bolsonaro, dirigindo-se ao ministro da Cidadania, João Roma (Republicanos-BA).
O projeto do cadastramento por aplicativo foi revelado pelo UOL em janeiro e provocou revolta entre entidades de representação de municípios e especialistas em política social.
A MP do Bolsa Família ainda não deixou o Ministério da Cidadania, mas já conta com pareceres favoráveis do corpo técnico da pasta, da AGU (Advocacia-Geral da União) e da CGU (Controladoria-Geral da União).
Segundo três fontes com acesso às tratativas no ministério, a tendência é de que a MP seja enviada em breve para a assinatura de Bolsonaro —com isso, terá força de lei por 120 dias e terá que ser aprovada pelo Congresso.
Procurado, o Ministério da Cidadania afirmou que não responderia aos questionamentos da reportagem porque, segundo a pasta, o projeto ainda está em análise.
Potencial de R$ 6,6 bi para creches privadas
A MP não substitui o Brasil Carinhoso por nenhuma outra política de fomento à educação pública. No lugar disso, cria um voucher mensal de R$ 250 para que as próprias famílias paguem vagas em creches "particulares, comunitárias, confessionais, beneficentes ou filantrópicas".
Entretanto, o benefício só será pago a famílias monoparentais (quando apenas a mãe ou o pai é responsável pela criança) cujo responsável consiga um emprego formal —caso a renda familiar supere o limite máximo do Bolsa Família, perde-se obrigatoriamente o direito ao benefício.
Ainda é necessário que as crianças tenham idades entre 6 meses e 3 anos e 11 meses, além de não conseguir matrícula na rede pública —a forma como essa falta de vagas será comprovada não é especificada em nenhum dos documentos obtidos pela reportagem.
Está previsto que a regulamentação da MP seja feita em um prazo de 90 dias após sua publicação.
Segundo nota técnica da Snapi (Secretaria Nacional de Atenção à Primeira Infância), o Auxílio Creche permitiria "identificar a criança beneficiada com o recurso" com "possibilidade de maior controle dos gastos públicos". No entanto, essa fiscalização já acontece com os repasses aos municípios para vagas públicas.
A secretaria fala ainda em "estímulo à abertura de novas vagas de creche pelo setor privado" e "aproveitamento da capacidade já instalada".
O filão a ser explorado pelas creches privadas —inclusive aquelas mantidas por instituições religiosas, chamadas de confessionais— é significativo.
Segundo estimativas do Ministério da Cidadania, há cerca de 2,2 milhões de crianças entre 6 meses e 3 anos e 11 meses oriundas de famílias monoparentais inseridas no Cadastro Único, base para a concessão do Bolsa Família. Elas formam um mercado potencial de R$ 6,6 bilhões anuais, caso todas essas famílias conseguissem empregos formais e passassem a ser elegíveis para o voucher.
Brasil Carinhoso aumentou cobertura de creches
O Brasil Carinhoso foi criado por Dilma Rousseff em 2012. Até 2015, o programa aplicou mais de R$ 2,6 bilhões na expansão da rede de creches, em valores corrigidos. Entre 2011 e 2014, a cobertura para crianças beneficiárias do Bolsa Família subiu de 13,9% para 19,6%, segundo dados do Ministério da Cidadania.
Contudo, a partir do ajuste fiscal promovido no segundo governo Dilma e após o impeachment, o volume de recursos caiu drasticamente. Em 2019, último ano com informações consolidadas, o governo Bolsonaro investiu menos de R$ 8 milhões, também em valores corrigidos.
Os números constam na nota técnica da Snapi para embasar a extinção do programa (veja no gráfico).
Especialistas veem retrocesso e falta de transparência
Técnicos, especialistas e gestores da área de Assistência Social ouvidos pelo UOL consideram o projeto um retrocesso.
De acordo com a economista Joana Mostafa, ex-diretora do Cadastro Único para Programas Sociais, a ideia do voucher para famílias monoparentais —quase sempre comandadas por mães solo— é machista e deturpa a lógica de atender preferencialmente as pessoas mais vulneráveis.
"É uma política que não privilegia as pessoas mais vulneráveis. São justamente aquelas que vão ter mais dificuldade de acessar o mercado formal, não só pela pandemia, como pelo alto índice de desemprego."
Vai beneficiar quem tem alguma condição de se colocar no mercado de trabalho formal, que em geral são pessoas que sofrem menos discriminação, têm dinheiro para pegar ônibus e procurar emprego. Acabar com o Brasil Carinhoso e colocar em troca uma política de creches que faz uma espécie de chantagem com pessoas que não têm como sair da informalidade é perverso
Joana Mostafa, ex-diretora do Cadastro Único para Programas Sociais
José Crus, subsecretário de Assistência Social de Belo Horizonte e vice-presidente do Colegiado Estadual dos Gestores Municipais de Assistência Social de Minas Gerais, diz que nenhum ponto do novo Bolsa Família foi debatido com estados e municípios —que também integram o Sistema Único de Assistência Social.
"Essa pauta não foi apresentada ou discutida na Comissão Intergestores Tripartite, nem pelo Conselho Nacional de Assistência Social. O governo federal tem conduzido isso de forma bastante verticalizada, de cima para baixo."
Ainda segundo ele, a extinção do Brasil Carinhoso reduz a rede de proteção social do Estado brasileiro.
"A educação infantil é um direito constitucional. O que está por trás de vários dispositivos do governo federal é a redução do Estado. Só que é um Estado mínimo apenas para os pobres. Nosso esforço é ter um Estado protetivo, proativo e preventivo", defende Crus.
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