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Pazuello queria mais vacinas no 2º semestre, relatou Dominghetti ao pai

1º.jul.2021 - Luiz Paulo Dominghetti, representante da Davati Medical Supply, em depoimento à CPI da Covid - Edilson Rodrigues/Agência Senado
1º.jul.2021 - Luiz Paulo Dominghetti, representante da Davati Medical Supply, em depoimento à CPI da Covid Imagem: Edilson Rodrigues/Agência Senado

Hanrrikson de Andrade, Luciana Amaral e Rubens Valente

Do UOL, em Brasília

22/07/2021 04h00Atualizada em 04/08/2021 18h02

Em conversas via WhatsApp com o pai, às quais o UOL teve acesso, o cabo da Polícia Militar mineira Luiz Paulo Dominghetti afirmou que o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello manifestou interesse em adquirir lotes de vacinas contra a covid-19 oferecidas pela empresa Davati Medical Supply com o objetivo de abastecer o PNI (Programa Nacional de Imunizações) no segundo semestre de 2021.

A troca de mensagens entre o PM e seu pai, Paulo César Pereira, aconteceu em 23 de fevereiro deste ano, dia em que o policial afirma ter participado de reuniões na sede do Ministério da Saúde. O UOL não conseguiu contato com Pazuello. A assessoria da pasta, a Presidência da República e a Casa Civil também foram procuradas e até a publicação deste texto não se manifestaram.

Em fevereiro, a Davati tentava emplacar uma primeira venda de imunizantes (400 milhões de doses da AstraZeneca/Oxford), oferta que acabou não se concretizando depois de um suposto pedido de propina do então diretor de logística do ministério, Roberto Ferreira Dias.

Demitido do cargo, Dias nega ter cometido irregularidades. O governo argumenta que as conversas com o grupo representado por Dominghetti nunca passaram de tratativas iniciais.

O suposto interesse expresso por Pazuello em adquirir vacinas da Davati para o segundo semestre se deu durante a tramitação da primeira oferta. Como não houve qualquer tipo de acerto, nada foi comprado. O vendedor não esclareceu se a segunda demanda em potencial, à época, também seria para a importação de doses da AstraZeneca/Oxford.

O policial militar lotado em Alfenas (MG) e que atuaria como uma espécie de revendedor autônomo nas horas vagas é personagem central da polêmica negociação entre a União e a Davati —empresa com sede no Texas e sem presença formal no Brasil. Segundo Dominghetti, as negociações não avançaram após o pedido de propina.

O episódio foi revelado em reportagem do jornal Folha de S.Paulo, publicada em 29 de junho, e se tornou um dos principais objetos de apuração na CPI da Covid, no Senado. O pedido de propina teria sido de US$ 1 por dose, isto é, US$ 400 milhões. Os beneficiários seriam Dias (que perdeu o cargo após a repercussão inicial do caso) e terceiros vinculados a ele. Posteriormente, Dominghetti prestou depoimento à CPI e reafirmou a acusação.

Em troca de mensagens com o pai, entre os dias 16 e 26 de fevereiro, o cabo da PM mineira relata o andamento das conversas com o Ministério da Saúde —que ocorriam sob intermediação do coronel Marcelo Blanco (ex-assessor da pasta e citado na CPI da Covid como um dos elos entre a Davati e o governo) e de Guilherme Filho Odilon (parceiro comercial do policial).

As mensagens foram reproduzidas nesse texto exatamente da forma como foram escritas no WhatsApp.

Euforia antes do jantar com Dias

Em 23 de fevereiro, com as negociações adiantadas e supostamente caminhando para um desfecho positivo, Dominghetti afirma ter comparecido ao prédio do Ministério da Saúde, em Brasília, para finalizar o acordo. Às 12h13, ele avisa ao pai: "Estou no ministério". O interlocutor então questiona: "Tudo caminhando bem?". "Simmmm", responde o policial. Na sequência, ele afirma:

Pai - 23/2/21 - 13:44:04
Fecha logo essa porteira".

Dominghetti - 23/2/21 - 14:22:33
Já está fechado Agora e o trâmites burocráticos".

Pai - 23/2/21 - 14:24:30
Excelente, você é 10. Parabéns! Deoois me dê detalhes. Estou muito contente!"

Dominghetti- 23/2/21 - 14:24:55
Saindo daqui aviso."

Quase duas horas depois, ansioso para receber a notícia do trato, o pai cobra uma resposta do filho. O interlocutor indaga se o policial estaria "atrás do Mercosul" (sic). Dominghetti responde:

Dominghetti- 23/2/21 - 17:13:14
Fui chamado pelo ministro pazuelo."

Pai- 23/2/21 - 17:22:07
Caraca! O que será que ele está querendo?"

Pai- 23/2/21 - 17:23:22
Não esqueça, somos todos Bolsonaro!"

Dominghetti - 23/2/21 - 17:27:57
Vacinas uai."

Dominghetti - 23/2/21 - 17:27:57
Kkk."

O pai de Dominghetti pergunta então se o motivo da suposta reunião seria "mais", isto é, um maior número de vacinas em relação ao que já estava sendo negociado.

O vendedor da Davati responde que o então ministro da Saúde gostaria de "fazer uma proposta comercial para [o] segundo semestre". E completa: "Mais".

O pai reage com ironia: "Essa pandemia vai longe".

Dominghetti - 23/2/21 - 17:30:06
Acho que Brasília vai ser nosso novo la."

Dominghetti - 23/2/21 - 17:30:09
Lar."

Dominghetti - 23/1/21 - 17:30:10
Kkkk."

Pai - 23/2/21 - 17:30:59
Ainda tem vacina? Parece que é só você que vende rsrsrsrs Brasília é outro mund$."

Dominghetti - 23/2/21 - 17:31:31
Acho que gostaram do praça aqui."

Dominghetti - 23/2/21 - 17:31:33
Kkkkk."

Pai - 23/2/21 - 17:32:47
Isso é muito bom, vai abrir muitas portas. Logo você vai comprar uma lancha para por lá no lago Paranoá."

Dominghetti - 23/2/21 - 17:33:57
Kkkkk."

Pai - 23/2/21 - 17:34:23
É o Rei das Vacinas."

Os dois voltam a se falar por mensagem apenas no dia seguinte, e Dominghetti reafirma as "melhores expectativas" quanto ao fechamento do negócio. Em 24 de fevereiro, ele teve ainda reuniões com outros potenciais compradores. Um dia depois, em 25 de fevereiro, houve a reunião entre o representante da Davati e o então diretor de logística Roberto Ferreira Dias.

Foi nesse encontro que ocorreu, de acordo com Dominghetti, o pedido de propina de US$ 1 por dose, que teria sido negado. No restaurante, segundo declarou o policial à CPI, Dias afirmou: "Pensa direitinho que amanhã eu vou te chamar no ministério com uma nova proposta".

Nos diálogos via WhatsApp, porém, não há menção à cobrança de vantagem ilícita.

Dominghetti - 25/2/21 - 15:25:28
Ministério janto hoje com secretário executivo que assina os contratos."

Dominghetti - 25/2/21 - 15:26:03
Aí acabou."

Dominghetti - 25/2/21 - 15:26:06
No ministério."

Dominghetti - 25/2/21 - 15:26:23
Posso volta ao nosso querido e provisório lar em tc."

Dominghetti - 25/2/21 - 15:26:25
Kkk."

Cauteloso, o pai questiona se o filho achava que não teria "problema" (não há um contexto que ajude a esclarecer a que tipo de "problema" ele se referia). Dominghetti retruca com confiança: "Só soluções".

Na noite de 25 de fevereiro, supostamente após o jantar com Dias, o cabo da PM mineira envia mensagem em tom de confirmação (com um equívoco em relação ao número de doses).

Dominghetti - 25/2/21 - 21:16:56
Ministério e nosso."

Dominghetti - 25/2/21 - 21:16:56
500 milhões."

Dominghetti - 25/2/21 - 21:16:56
Doses."

Dominghetti - 25/2/21 - 21:17:08
Acabamos de doar 20 milhões de seringas."

Dominghetti - 25/2/21 - 21:17:53
Ganhei um passaporte diplomático da ONU."

Pai - 25/2/21 - 21:18:28
Doou para o governo. Passaporte PUTZ! Você tá que tá."

Alegria durou pouco

Apesar da euforia demonstrada no diálogo com o pai, as expectativas de Dominghetti foram frustradas nos dias que sucederam o jantar com Roberto Dias. Também não houve confirmação de que o Ministério da Saúde tenha recebido doação de seringas da Davati.

Em 26 de fevereiro, dia seguinte ao encontro no restaurante, Dominghetti realmente voltou ao Ministério da Saúde para nova reunião com Roberto Dias, na sala dele, disse à CPI. A proposta levada era a original de US$ 3,50 por dose de vacina, sem o acréscimo de US$ 1.

As mensagens seguintes mostram que, para Dominghetti, o contrato seria assinado já naquele dia, sucedido de um anúncio oficial à imprensa.

Mais uma vez, não há menção ao suposto pedido de propina na noite do dia anterior —e o fato também não é colocado como empecilho para a celebração do acordo.

O pai de Dominghetti, autor de um blog de política em Minas Gerais, alimentava a expectativa de "divulgar em primeira mão" o acordo costurado pelo filho com o Ministério da Saúde. "Já está pronto no Blog, só esperando sua confirmação", escreve ele.

Pai - 26/2/21 - 09:53:49
Então, já posso ver uma sala nesses prédios da Asa Sul?"

Pai - 26/2/21 - 10:01:00
Bem, quando fechar aí me avise. Quero liberar o Blog; a turma vai ficar espantada."

Pai - 26/2/21 - 10:15:02
O povão vai de boca aberta."

Dominghetti - 26/2/21 - 10:26:14
Vou montar um escritório aqui em Brasília."

Pai - 26/2/21 - 10:26:44
Isso, andei vendo umas salas. Tem coisa boa."

Mais tarde, Dominghetti relata ao pai que o "trem" ia demorar devido a análises técnicas, jurídicas, de pagamento, logística e entrega. À CPI Dominghetti informou que Dias pediu uma documentação complementar que o policial não tinha no momento e ficou de tratar diretamente com Cristiano Carvalho, representante oficial da Davati no Brasil.

O negócio não foi fechado.

Ainda assim, as negociações continuaram, inclusive com a intermediação do reverendo Amilton Gomes de Paula. As mensagens trocadas por Dominghetti e Blanco pelo celular indicam que o policial foi convidado para ir ao ministério em 2 de março.

Numa reclamação com Blanco, no dia anterior, Dominghetti afirma: "Não existem outros caminhos. Tudo deságua aqui. Eu sempre fui bem aberto e claro no processo. Fui chamado amanhã no ministério. Urgente". E diz que a reunião foi confirmada por "Gean Silva", quem Blanco responde ser o secretário de Élcio Franco.

Em mais mensagens ao pai, agora em 12 de março, Dominghetti afirmou estar de novo no ministério. Na conversa, ele celebra suposta aquisição "inicial" de 200 milhões de doses, mas ressalta que o anúncio só aconteceria após "processo de compra" e "dos enviados da Anvisa para verificar a vacina na França".

Há referências a mais tentativas posteriores de emplacar algum negócio, todas sem sucesso.

As ligações de Dominghetti no ministério

No depoimento à CPI da Covid, em 1º de julho, Dominghetti disse que tinha o consentimento de Cristiano Carvalho para representar a Davati nessa negociação com o Ministério da Saúde. Seu nome consta na proposta da empresa à pasta, assinada pelo presidente da Davati nos Estados Unidos, Herman Cardenas.

Dominghetti relatou ter sido ele mesmo quem levou a notícia a Carvalho de que o ministério poderia comprar as 400 milhões de doses da vacina Oxford/AstraZeneca e que, por isso, conseguiu essa espécie de permissão.

Segundo Dominghetti, ele esteve três vezes no Ministério da Saúde ofertando as vacinas e se encontrou com três membros do alto escalão: o então secretário-executivo, Élcio Franco, o então diretor de logística, Roberto Dias, e o então diretor de imunização e doenças transmissíveis da Secretaria de Vigilância em Saúde, Lauricio Monteiro Cruz.

Nenhum deles está mais no cargo. Os dois últimos foram exonerados após relatos de corrupção no processo de compras de vacinas.

Na primeira vez em que esteve no ministério, Dominghetti disse ter tido reunião com Lauricio ao lado de representantes da Senah (Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários), que, apesar do que o nome possa levar a entender, é uma instituição privada.

A entidade é presidida por Amilton Gomes de Paula, que se apresenta como reverendo, e teria feito o contato político para que, ao lado de Dominghetti, conseguissem o encontro com Lauricio. Como vacinas não eram a área de Lauricio, ele teria dito que encaminharia os vendedores a Elcio Franco, responsável por essas aquisições, segundo Dominghetti.

De acordo com fotos de Dominghetti enviadas ao pai e à mãe, esse encontro teria acontecido em 22 de fevereiro. Àquela altura, o policial já tratava a compra das vacinas pelo ministério como um negócio certo por parte do governo federal.

Blanco conversava com a Davati por meio de Cristiano e foi quem fez a ponte com Roberto Dias, disse Dominghetti aos senadores.

Pela fala de Dominghetti, ao se reunir com Élcio Franco, este não tinha conhecimento de que o policial já vinha tratando das vacinas com Dias.

A CPI da Covid foi criada no Senado após determinação do Supremo. A comissão, formada por 11 senadores (maioria era independente ou de oposição), investigou ações e omissões do governo Bolsonaro na pandemia do coronavírus e repasses federais a estados e municípios. Teve duração de seis meses. Seu relatório final foi enviado ao Ministério Público para eventuais criminalizações.