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PM, Dominghetti vai de negociador de vacinas a 'testemunha plantada' na CPI

Luiz Paulo Dominghetti, representante da empresa Davati Medical Supply, em depoimento à CPI da Covid - Cláudio Marques/Futura Press/Estadão Conteúdo
Luiz Paulo Dominghetti, representante da empresa Davati Medical Supply, em depoimento à CPI da Covid Imagem: Cláudio Marques/Futura Press/Estadão Conteúdo

Rafael Neves

Do UOL, em Brasília

03/07/2021 04h00Atualizada em 05/07/2021 09h45

A irritação tomava conta da sala da CPI da Covid na última quinta-feira. Depois de horas de depoimento, senadores governistas e oposicionistas continuavam sem entender como um cabo da Polícia Militar de Minas Gerais, que dizia ter começado a vender insumos e medicamentos há um ano e meio, tinha sido responsável por uma oferta de negócio bilionário que colocava o governo federal na mira de mais uma investigação.

Este policial era Luiz Paulo Dominghetti Pereira, de 44 anos. Ele contou à comissão que tinha em mãos um acordo com a empresa Davati Medical Supply, dos Estados Unidos: se conseguisse acertar a venda de 400 milhões de doses do imunizante Astrazeneca, receberia até 5 centavos de dólar por dose vendida. Isso significaria que ele poderia embolsar, apenas por fazer a ponte entre o governo e os distribuidores, a quantia de US$ 20 milhões, que equivalem a R$ 100 milhões no câmbio atual.

Nada mal para um servidor público em dificuldades financeiras, casado e pai de três filhos, que reconheceu diante dos senadores ser alvo de um processo judicial por falta de pagamento de aluguéis. "Não tenho vergonha, porque às vezes a gente tem que fazer escolhas: ou eu pago o aluguel ou eu ponho comida em casa", declarou à CPI.

Dominghetti já era antipetista e apoiador de Bolsonaro mais de um ano antes da eleição do presidente, como mostra seu perfil no Facebook. Mas ele afirmou à CPI que nunca havia tido contato com o governo até o final do ano passado, quando abriu dois canais de diálogo com o Ministério da Saúde.

Um deles era a Senah (Secretaria Nacional De Assuntos Humanitários), uma entidade presidida por um pastor evangélico que vinha oferecendo vacinas Johnson e da Astrazeneca ao governo federal e a prefeituras municipais. O outro elo, segundo Dominghetti, foi Marcelo Blanco da Costa, um coronel da reserva do Exército que trabalhou no ministério até janeiro.

Coronel Blanco, como é conhecido, era assessor do DLOG (Departamento de Logística em Saúde) da pasta. Foi o chefe dele, o então diretor do DLOG Roberto Ferreira Dias, que Dominghetti acusou de ter cobrado propina em um jantar em Brasília, no dia 25 de fevereiro. Dias confirma o encontro, mas nega a acusação.

Dominghetti diz ter feito contato com Blanco por meio de um representante comercial com quem havia fechado um negócio de venda de medicamentos no ano passado. À CPI, ele disse se lembrar apenas do primeiro nome deste interlocutor. "Ao Coronel Blanco chegamos através de um parceiro comercial de nome Odilon", afirmou ele. O policial não deu detalhes, porém, de como se aproximou da Senah.

Transgressão disciplinar

Dominghetti depôs à CPI já sabendo que era alvo de uma investigação da PM de Minas Gerais. Em nota divulgada no dia anterior, a corporação afirmou que vai apurar uma possível violação ao Código de Ética, que "considera como transgressão disciplinar o militar da ativa que participe de firma comercial ou de empresa industrial de qualquer natureza ou nelas exerça função ou emprego remunerado". A infração é classificada como de natureza média.

No mesmo comunicado, a PM deu detalhes da carreira de Dominghetti. Informou que ele trabalhou no gabinete de militar do governador Romeu Zema (Novo), em Belo Horizonte, de agosto de 2019 a dezembro de 2020, onde foi segurança predial, mas acabou afastado "por não corresponder ao perfil necessário de atuação no setor".

Dominghetti começou a carreira em abril de 1999 e luta hoje, na Justiça, contra uma decisão que impediu sua matrícula em um curso de formação para sargentos. O policial mora em Três Corações, no sul do estado, mas atua no batalhão de Alfenas, a quase 100 km de distância.

Postagens sobre seu trabalho na PM, em geral acompanhadas de todos em que aparece fardado, eram um tema recorrente em seu perfil no Facebook, que está parado desde julho do ano passado. Além de publicações bolsonaristas, a rede social também revela detalhes da vida pessoal de Dominghetti: é cozinheiro amador, espírita kardecista e torcedor do São Paulo (apesar de viver com a família em Minas, ele nasceu na capital paulista).

O UOL tentou obter mais detalhes sobre Dominghetti com o pai dele, o advogado e jornalista Paulo César Pereira. Pereira recusou a entrevista, mas ajudou a esclarecer uma dúvida sobre a grafia do sobrenome do filho. Todos os documentos da CPI, além de parte dos que correm em processos judiciais, identificam o policial como "Dominguetti". Segundo o pai, porém, a grafia correta é com "gh".

"Acordo de cavalheiros"

A vida de Dominghetti virou de cabeça para baixo na última terça-feira, quando fez a acusação contra Dias em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo. Chamado a depor dali a pouco mais de 24 horas, ele surpreendeu os senadores ao apresentar um áudio do deputado Luis Miranda (DEM-DF) e declarar que ele estaria "tentando negociar vacina". Uma semana antes, Miranda havia afirmado que alertou Bolsonaro de irregularidades no contrato de compra da vacina indiana Covaxin.

A iniciativa de mostrar o áudio exasperou parlamentares da oposição. O senador Rogério Carvalho (PT-SE) chegou a levantar a suspeita de que Dominghetti "foi plantado para desqualificar uma das principais linhas de investigação da CPI". Luis Miranda, que estava no Congresso, invadiu furioso a sala da comissão para tirar satisfações com o policial. Em seguida, afirmou que o áudio tratava da venda de luvas cirúrgicas e registrou em cartório uma transcrição do material, para reforçar sua versão.

Aos senadores Dominghetti disse que havia tido acesso ao áudio, dias antes, por meio de Cristiano Alberto Carvalho, representante da Davati no Brasil. Alegou ainda que só mostrou a gravação porque "não poderia faltar com a verdade" quando lhe perguntaram quem teria tentado negociar vacinas em nome da Davati. Foi ele mesmo, porém, quem levantou essa suspeita sem citar o nome de Miranda, o que levou o senador Humberto Costa (PT-PE) a perguntar de quem se tratava.

Os senadores também saíram insatisfeitos com as explicações de Dominghetti sobre a negociação com o governo. Parecia estranho a todos que a Davati, que muitos desconheciam até ali, fosse capaz de entregar ao governo 400 milhões de doses da Astrazeneca, uma vacina disputada no mercado mundial.

Quando era questionado sobre detalhes de como o negócio se viabilizaria, o policial afirmava que isso deveria ser tratado com a Davati e com Cristiano Carvalho. Sua atuação formal junto à distribuidora, segundo ele, começou apenas em abril. Quando se reuniu com o ex-diretor Roberto Dias no restaurante em Brasília, portanto, Dominghetti teria apenas um trato informal com a Davati, algo que ele chamou de "acordo de cavalheiros".

Ao UOL o advogado Flávio Correa de Moraes, que representa Dominghetti, reafirmou o que o cliente disse à CPI. Sobre a acusação a Luis Miranda, ele afirmou que o áudio não deixa claro que se tratava de uma negociação de luvas cirúrgicas, como alega o deputado. E afirmou que "ainda que ele [Dominghetti] tenha entendido equivocadamente" o conteúdo do material, isso "não pode ser usado para desprestigiá-lo".

O defensor também repudiou a suspeita da oposição de que ele teria sido "plantado" para desqualificar Miranda e o depoimento contra Bolsonaro na CPI. "Ora, ele apanhou tanto da ala governista. Isso por si só já evidencia que a verdade colacionada pelo meu cliente não agradou. O enredo de colocá-lo como testemunha plantada é tão bisonho quanto surreal", afirmou.

A respeito das investigações da PM, que apuram se Dominghetti cometeu infração disciplinar, Moraes afirma que não houve irregularidades na atuação dele. "O texto aqui [o Código de Ética da PM de Minas] proíbe figurar como sócio no capital social de uma empresa, fato que nunca ocorreu. Quanto a exercer emprego remunerado, isso não era um emprego fixo, atuava em horários de folga como representante", defende o advogado.

A Davati também foi questionada sobre as circunstâncias do negócio. Em nota, a empresa diz que não estava em posse dos 400 milhões de doses oferecidas ao governo, mas que fazia a ponte entre o ministério "e um allocation holder, empresa que possuía créditos de vacinas junto ao laboratório AstraZeneca". Sobre a capacidade de fazer a entrega, a Davati diz que a proposta enviada ao governo detalhava passo a passo a execução do negócio. A Davati reiterou, ainda, que o único representante da empresa no Brasil é Cristiano Carvalho.