Reverendo irrita CPI, chora, pede 'perdão' e confirma ponte com Saúde
O reverendo Amilton Gomes de Paula, depoente de hoje na CPI da Covid, irritou senadores do colegiado ao fornecer respostas imprecisas e com contradições.
Em um dos breves momentos de maior clareza de raciocínio, a testemunha confirmou ter atuado como um dos elos para que a Davati Medical Supply —empresa americana representada pelo policial militar Luiz Paulo Dominghetti— conseguisse ofertar ao Ministério da Saúde um suposto lote de 400 milhões de doses da vacina AstraZeneca.
Amilton, que é líder da entidade evangélica privada Senah (Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários), disse ter sido procurado por Dominghetti em 16 de fevereiro deste ano. Posteriormente, no dia 22, o religioso teria encaminhado um simples email à SVS (Secretaria de Vigilância em Saúde) com o objetivo de agendar uma reunião.
O cabo da PM mineira Luiz Paulo Dominghetti se apresentava, à época, como um revendedor da Davati, empresa com sede no Texas e sem representação formal no Brasil. Havia uma expectativa de lucrar milhões de reais com o acordo (dinheiro de comissão que seria repartido entre o PM e outros intermediários), mas as negociações não vingaram.
Em 29 de junho, Dominghetti foi à imprensa para denunciar um suposto pedido de propina por parte de Roberto Dias, ex-diretor do departamento de logística do Ministério da Saúde. Posteriormente, em depoimento ao colegiado, o policial ratificou a versão.
Com as informações prestadas por Dominghetti, a CPI passou a investigar o caminho percorrido pelo PM na tentativa de vender vacinas para o governo. A partir de um cruzamento de narrativas, apurou-se que as portas do ministério teriam sido abertas pelo reverendo Amilton, em fevereiro, período em que o governo Bolsonaro sofria diariamente críticas pelo atraso na campanha de vacinação.
Por volta das 15h40, Amilton chorou afirmando estar arrependido de ter se envolvido nas tratativas dessas supostas vacinas e pediu desculpas.
"Foi um erro que, se pudesse voltar atrás, eu voltaria. Peço perdão a todos os senadores, a todos os deputados, e o que eu puder fazer para melhorar a vida de alguém... Para quem me conhece como pastor e hoje está me assistindo, está dizendo: 'esse eu conheço'. Jamais fraudei ou tirei algo de alguém e estou aqui para contribuir com o Brasil sempre", declarou.
Reunião marcada de forma relâmpago após email
Mesmo sem qualquer credencial prévia ou interlocução com a pasta federal, de acordo com a versão apresentada pelo reverendo, a resposta do Ministério da Saúde ao email enviado em 22 de fevereiro (às 12h39) teria chegado horas depois (às 16h30).
Naquele mesmo dia, junto a Dominghetti, Amilton e seus parceiros da Senah participaram de reuniões na sede do órgão, em Brasília, para falar da suposta oferta de vacinas da Davati.
Senadores do bloco crítico ao governo Jair Bolsonaro (sem partido) reagiram com surpresa às informações prestadas pelo depoente.
O vice-presidente da CPI, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), observou que, enquanto negociantes informais receberam uma resposta praticamente instantânea por parte do Ministério da Saúde, grandes farmacêuticas internacionais —como a Pfizer— encontraram dificuldades para dialogar com o governo brasileiro.
"Vêm prefeitos para cá, querem ir ao ministério, e a gente não consegue levar. Agora o senhor sai num Uber, num táxi, chega ao ministério e é recebido no ministério? Me desculpe, reverendo, mas não dá para acreditar nisso. É muito furada essa história", afirmou o presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM).
De acordo com as explicações de Amilton, o contato com a SVS teria ocorrido depois de uma pesquisa na internet.
"E esse encaminhamento [junto ao Ministério da Saúde, para levar a oferta de Dominghetti] foi feito, sim, por email. Nós fizemos esse encaminhamento para o SVS. Fizemos uma pesquisa pela internet e encaminhamos para o SVS", disse o religioso.
"Nós chegamos à SVS... Aqui, eu sou de Brasília, o Ministério da Saúde fica aqui na Esplanada e a SVS fica no PO. Ela não fica aqui, então, nós encaminhamos um email para a SVS. Dia 22, fomos respondidos para encaminhar essa demanda e a reunião aconteceu no dia 22 de fevereiro na SVS."
O depoente não soube explicar o motivo pelo qual houve tamanha celeridade na ponte entre o governo e os ofertantes de vacinas.
Durante a explanação, o reverendo Amilton se mostrou confuso, gaguejou em alguns momentos e caiu em contradição em relação ao dia do email enviado à SVS. Antes de esclarecer que todo o contato havia sido realizado em 22 de fevereiro, ele declarou que a mensagem eletrônica tinha sido enviada em 18 de fevereiro.
"Foi feito um email, encaminhamos o e-mail. Nós estamos diante de uma escassez de vacina a nível mundial. Nós conversamos isso no dia 16, no dia 17, no dia 18 nós encaminhamos o email eletrônico de forma formal."
De acordo com Amilton, ele sofreu "pressão" de Dominghetti e do outro representante da Davati, Cristiano Carvalho, para conseguir as reuniões com o governo federal.
"Eu estava recebendo pressão exatamente de Cristiano e Dominghetti para levar essa demanda adiante, conversar com o presidente [Bolsonaro], conversar com o ministério, conversar com quem for, mas que teria que dar prosseguimento ao pedido dos dois", declarou.
Dominghetti relatou ter tido reunião com Lauricio ao lado de representantes da Senah na primeira vez em que esteve no Ministério da Saúde.
Amilton teria feito o contato político para que, ao lado de Dominghetti, conseguissem o encontro com Lauricio, segundo o policial. Como vacinas não eram a área de Lauricio, este teria dito que encaminharia os vendedores ao então secretário-executivo da pasta, Elcio Franco, responsável por essas aquisições, contou Dominghetti.
Fotos no celular de Dominghetti, periciado pela CPI, mostram Amilton ao lado do policial militar e Lauricio, entre outros, no Ministério da Saúde em 22 de fevereiro.
Mensagens no aparelho também apontam que Dominghetti e Carvalho tinham a expectativa de que Amilton se encontraria com Bolsonaro. Em conversa de Dominghetti com um interlocutor identificado como "Amauri Vacinas Embaixada", ligado a Amilton, este diz que "o reverendo nesse momento está com o 01", em 15 de março, às 17h02. Hoje, Amilton afirmou que teve uma crise renal e não pôde ir ao encontro com Bolsonaro.
Após o negócio das vacinas não andar, Dominghetti e Carvalho passaram a criticar a capacidade política do reverendo.
Hoje, Amilton negou qualquer encontro com o presidente da República ou com a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, e argumentou que a Senah foi usada "de maneira ardilosa".
Hoje, com a série de eventos divulgados, entendemos que fomos usados de maneira ardilosa para fins espúrios e que desconhecemos. Vimos um trabalho de mais de 22 anos de uma ONG, entidade séria, voltada para ações humanitárias, educacionais, jogado na lama, trazendo prejuízo na sua credibilidade e atingindo seus integrantes nas relações profissionais e familiares."
Amilton Gomes de Paula, reverendo e líder da Senah
Senadores de oposição e até mesmo governistas demonstraram insatisfação com o comportamento de Amilton no decorrer da audiência.
O governista Marcos Rogério (DEM-RO), por exemplo, disse ter dúvidas se o reverendo faz parte de uma "tríade de golpistas" ou se realmente foi enganado, como o depoente alega.
Por volta de 13h30, o presidente do colegiado, Omar Aziz, interrompeu a sessão e orientou o depoente a fazer uma avaliação quanto ao seu compromisso de falar a verdade. Após um tempo para almoço, a sessão foi retomada.
Senah fez oferta por US$ 1 a mais do que a Davati
Randolfe Rodrigues ainda apresentou documentos que mostram uma comunicação do dono da Davati, Herman Cardenas, ofertando dose da AstraZeneca por US$ 10 ao Ministério da Saúde. No entanto, o reverendo Amilton teria apresentado uma oferta de dose a US$ 11. O US$ 1 adicional é o mesmo valor citado por Dominghetti como suposta propina pedida por Roberto Dias.
Amilton afirmou aos senadores desconhecer o documento relativo à oferta com o preço de US$ 10. Segundo ele, o documento que ofertava vacinas a US$ 10 não tem ligação com o email que cita os US$ 11 por unidade.
Senah e associações sem autorização
A Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários, que até o ano passado se chamava Secretaria Nacional de Assuntos Religiosos, foi fundada por Amilton em 1999.
Segundo reportagem da Agência Pública, o reverendo parece ter bom trânsito no meio político de Brasília. Em suas redes sociais, ele tem fotos com o filho do presidente Jair Bolsonaro, o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ). Recentemente, o pastor apareceu na divulgação da "Conferência Nacional de Liderazgo" ao lado da deputada federal bolsonarista Carla Zambelli (PSL-SP).
O líder religioso também participou da criação da Frente Parlamentar Mista Internacional Humanitária pela Paz Mundial (FremhPaz) junto ao pastor Laurindo Shalom, da Associação Internacional Cristã Amigos Brasil-Israel, e do deputado federal Fausto Pinato (PP-SP), em 17 de setembro de 2019.
No estatuto da frente, a Senah surge com a missão de dar apoio jurídico "para pessoas e comunidades em situações de guerras, calamidades, e aos refugiados, em ajudas humanitárias nacionais e internacionais".
Em cartas timbradas da Senah e assinadas por Amilton, a entidade costumava usar logotipos da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e da ONU (Organização das Nações Unidas), entre outras instituições.
"Tem um documento aqui que o senhor diz: 'Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários, uma organização sem fins lucrativos e de apoio humanitário com atuação em mais de 190 países, reconhecida pela Organização das Nações Unidas e pela Confederação Nacional dos Bispos do Brasil'", disse Randolfe.
Questionado por senadores, Amilton admitiu não ter autorização oficial para tanto.
O líder da Minoria no Senado, Jean Paul Prates (PT-RN), afirmou que estar "evidente o intuito da organização do depoente de iludir os recipientes dessas cartas, desses documentos, pegando emprestadas essas autoridades e essas organizações".
Na avaliação dele, há falsidade ideológica e estelionato na situação. "Nós estamos diante de falsários e estelionatários que tentam enganar incautos na administração pública e/ou beneficiar espertos e oportunistas", declarou Prates.
A CPI voltou hoje aos trabalhos formais com depoimentos após recesso parlamentar de cerca de 15 dias.
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