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Saúde soube de duas ofertas suspeitas de vacinas, mas só acionou PF uma vez

Antes de lobista procurar governo, Franco havia denunciado outra empresa à Polícia Federal - Pedro França/Agência Senado
Antes de lobista procurar governo, Franco havia denunciado outra empresa à Polícia Federal Imagem: Pedro França/Agência Senado

Eduardo Militão e Luciana Amaral

Do UOL, em Brasília

30/07/2021 04h00

alertado pelo laboratório AstraZeneca sobre a ausência de intermediários na venda de vacinas contra a covid-19, o Ministério da Saúde soube de, pelo menos, duas ofertas suspeitas de imunizantes da empresa, apontam documentos enviados pelo governo à CPI da Covid nesta semana. Os dados indicam que a pasta comunicou o fato à Polícia Federal apenas na primeira ocasião, em janeiro.

À época, um empresário do Espírito Santo se apresentou falsamente como intermediário da venda de vacinas da AstraZeneca no Brasil. Sabendo que a farmacêutica tratava apenas diretamente com governos, o então secretário-executivo do ministério, Elcio Franco, comunicou a polícia, que abriu um inquérito e fez buscas e apreensões.

O UOL apurou que não há, porém, registro de que a PF tenha sido acionada pelo ministério na segunda oferta, ocorrida menos de um mês depois.

Em fevereiro, o Ministério da Saúde passou a ser procurado por outra empresa que se apresentava como intermediária de imunizantes. Era a Davati Medical Supply, representada pelo policial militar e vendedor autônomo Luiz Paulo Dominghetti.

Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo e, posteriormente, à CPI da Covid, o policial acusou um ex-diretor de logística do Ministério da Saúde de pedir propina para levar a negociação com o governo adiante.

A PF só abriu investigação relacionada a Dominghetti e à Davati recentemente, depois que o caso se tornou público, em junho.

Procurado, o Ministério da Saúde não prestou esclarecimentos até a publicação desta reportagem. Elcio Franco foi procurado, mas não foi localizado.

Em nota, a PF disse apenas que "os fatos noticiados pelo Ministério da Saúde estão sendo investigados em inquérito policial, que corre em sigilo".

Empresário buscou governo

Em meados de janeiro, o governo federal tentava obter as entregas das vacinas da AstraZeneca fabricadas na Índia, e o primeiro lote só chegou no dia 22 daquele mês.

Em 25 de janeiro, o empresário Christian Faria, da Biomedic Distribuidora, de Vila Velha (ES), se apresentou à Secretaria Executiva, dirigida então por Elcio Franco, como intermediário do laboratório AstraZeneca. O secretário-executivo ocupa o segundo cargo mais importante no ministério — o ministro era Eduardo Pazuello, militar assim como Elcio. A Biomedic ofereceu de 110 milhões a 300 milhões de doses de imunizantes, ao preço de US$ 9 por dose.

O Ministério da Saúde procurou o fabricante. Mas, em 29 de janeiro, a AstraZeneca enviou email de alerta à pasta, no qual afirmou que a Biomedic e nenhuma outra empresa distribuidora a representava.

Segundo afirmou a diretora de relações regulatórias da AstraZeneca, Alessandra Hengles, "toda a produção da vacina (...) é destinado [sic] exclusivamente a governos e organizações de saúde ao redor do mundo". "Não há possibilidade de comercialização da vacina produzida pela AstraZeneca no mercado privado."

No mesmo dia 29, uma sexta-feira, Elcio Franco se reuniu com o delegado da Polícia Federal Rômulo Cavalcante. Na segunda-feira 1º de fevereiro, um ofício foi entregue em mãos ao diretor-geral da PF à época, Rolando Alexandre, junto com as propostas por escrito recebidas da Biomedic e Faria e com o email de alerta da AstraZeneca.

Outros agentes apareceram em menos de um mês

Menos de um mês depois da oferta feita pela Biomedic e Faria, outro suposto vendedor de vacinas da Astrazeneca aparece nas negociações do Ministério da Saúde: Dominghetti.

Na primeira vez em que esteve no ministério, Dominghetti relatou ter tido reunião com o então diretor de imunização e doenças transmissíveis da Secretaria de Vigilância em Saúde do ministério, Lauricio Monteiro Cruz, ao lado de representantes da Senah (Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários), que, apesar do que o nome possa levar a entender, é uma instituição privada. Fotos no telefone celular de Dominghetti, periciado pela CPI da Covid, indicam que esse encontro aconteceu em 22 de fevereiro.

A entidade é presidida por Amilton Gomes de Paula, que se apresenta como reverendo. Ele teria feito o contato político para que, ao lado de Dominghetti, conseguisse o encontro com Lauricio. Dominghetti disse aos senadores que, como vacinas não eram a área de Lauricio, o diretor afirmou que encaminharia os vendedores a Elcio Franco, responsável por essas aquisições.

Àquela altura, o policial já tratava a compra das vacinas pelo ministério como um negócio certo por parte do governo federal, de acordo com mensagens contidas no telefone.

No dia 23, Lauricio enviou um email ao reverendo Amilton tratando do tema e repassando o caso à secretaria de Elcio Franco.

Dois dias depois, em 25 de fevereiro, Dominghetti se reuniu com o então diretor de logística do Ministério da Saúde, Roberto Dias, no restaurante Vasto, em Brasília. Dominghetti disse trabalhar para a empresa Davati e ofereceu vacinas da AstraZeneca. Segundo Dominghetti, Dias pediu propina de US$ 1 por dose de vacina vendida — o ex-diretor nega ter feito a solicitação de suborno.

Novo aviso à PF ignorou contatos com Davati

No dia seguinte, 26 de fevereiro, às 15h, Dominghetti teve reunião dentro do Ministério da Saúde com Roberto Dias.

Cerca de uma hora e meia antes, às 13h31, a Secretaria Executiva comandada por Elcio Franco enviou novos documentos ao então diretor da Polícia Federal, Rolando Alexandre, todos relacionados à Biomedic e a Christian Faria. Nenhum deles mencionou Dominghetti ou Amilton Gomes, que haviam tido tratativas com Lauricio e Roberto Dias.

Franco teve reunião antes de operação da PF

Na manhã de 12 de março, uma sexta-feira, Elcio Franco teve uma reunião no Ministério da Saúde com dois representantes da Davati. Dominghetti e o empresário Cristiano Carvalho, representante oficial da Davati no Brasil, estavam presentes. A informação desse encontro foi dada por Carvalho à CPI da Covid e consta em mensagem de celular do telefone de Dominghetti, periciado em depoimento dele à comissão.

Mas, de acordo com depoimento de Dominghetti, Franco não sabia que a Davati já estava em tratativas com Roberto Dias. "Houve uma troca de olhares [ao saber de Dias], ele [Elcio] abaixou a cabeça, simplesmente saiu e pediu para que dois estagiários pegassem os nossos nomes, que entrariam em contato, que ele ia validar a proposta da Davati. Ele recebeu emails pedindo essa proposta comercial, para que houvesse o avanço da aquisição das vacinas", relatou Dominghetti à CPI.

No entanto, o negócio não avançou mais.

Em 25 de março, a Polícia Federal fez a Operação Taipan. Um dos alvos foi Christian Faria, da Biomedic. O objetivo da ação era "investigar um grupo suspeito de oferecer fraudulentamente, ao Ministério da Saúde, 200 milhões de doses de vacinas contra a covid-19, em nome de um grande consórcio farmacêutico". Ao ser alvo de buscas, Faria alegou estar com coronavírus.

Em depoimento à CPI da Covid, Elcio Franco, mencionou "vários outros vendedores" de imunizante quando citou denúncia à Polícia Federal. "Nós solicitamos à Polícia Federal - assim como vários outros vendedores que vieram nos procurar, oferecendo quantidades enormes de vacina", afirmou ele em 9 de junho. Não se sabe quem seriam esses outros representantes, vendedores ou lobistas.

O UOL entrou em contato com Dominghetti. Se houver esclarecimentos, eles serão publicados. A Davati, Christian Faria, e a Biomedic não foram localizados.

A CPI da Covid foi criada no Senado após determinação do Supremo. A comissão, formada por 11 senadores (maioria era independente ou de oposição), investigou ações e omissões do governo Bolsonaro na pandemia do coronavírus e repasses federais a estados e municípios. Teve duração de seis meses. Seu relatório final foi enviado ao Ministério Público para eventuais criminalizações.