Topo

Motoboy diz à CPI que fez saque acima de R$ 400 mil e visitas a ministério

Hanrrikson de Andrade, Luciana Amaral, Rayanne Albuquerque e Stella Borges

Do UOL, em Brasília e em São Paulo

01/09/2021 09h34Atualizada em 01/09/2021 18h01

O motoboy Ivanildo Gonçalves afirmou hoje, em depoimento à CPI da Covid, que realizou saque de até "R$ 400 e poucos mil", sem especificar valores exatos, em contas bancárias da VTCLog —empresa que possui contratos com o Ministério da Saúde e é investigada por indícios de corrupção e outros crimes.

Na versão do depoente, sua função se limitava a pagar boletos e retirar dinheiro em espécie na boca do caixa, sob orientação do departamento financeiro da firma. Ele negou ter entregue recursos de forma indevida a terceiros.

"Nunca entreguei dinheiro [em situação de aparente delito] para ninguém", declarou.

A VTCLog é a empresa de logística contratada pelo Ministério da Saúde para cuidar da armazenagem e distribuição de medicamentos e vacinas em território nacional.

De acordo com informações obtidas pela CPI e reveladas pelo relator, Renan Calheiros (MDB-AL), o motoboy efetuou saques que somaram mais de R$ 3 milhões na mesma agência bancária (da Caixa Econômica Federal, localizada no aeroporto de Brasília), somente no período entre janeiro e julho desse ano.

Um requerimento aprovado hoje pela comissão determina que a Caixa Econômica Federal envie todos os registros de câmeras que possui no aeroporto de Brasília entre 1º de janeiro de 2018 a 1º de setembro de 2021, "seja de agência, postos de atendimento, caixas eletrônicos ou quaisquer outros pontos", em até três dias úteis.

Senadores suspeitam que Ivanildo, um trabalhador de origem humilde e que ganhava salário de menos de R$ 2 mil para atuar como motoboy, pode ter sido usado em um esquema criminoso (há indícios de lavagem de dinheiro, corrupção e outros delitos).

Sobras e visitas a ministério

Durante o depoimento, Ivanildo afirmou à CPI que os saques eram feitos na boca do caixa, assim como o pagamento de boletos e faturas —incluindo contas em nome de pessoas físicas (ele citou os donos da VTCLog como exemplo). Por outro lado, o motoboy negou ter agido em favor de Roberto Dias, ex-chefe do departamento de logística do Ministério da Saúde e investigado por suposta conexão irregular com a VTCLog.

Ivanildo disse ainda que não conhece Dias e que nunca esteve com ele. Indagado se ele havia feito entregas na sede do ministério, o depoente confirmou que esteve no local diversas vezes e que, em dado momento, se dirigiu ao quarto andar para entregar um pendrive.

Posteriormente, a comissão verificou que o quarto andar é justamente onde está instalado o departamento de logística, isto é, o ex-local de trabalho de Dias.

Os parlamentares também perguntaram qual teria sido o destino dos recursos provenientes dos saques. Ivanildo respondeu que entregava todo o dinheiro, além das sobras referentes aos pagamentos realizados diretamente na boca do caixa, a uma funcionária identificada como Zenaide Sá Reis. Ela trabalha no departamento financeiro da VTCLog, segundo Ivanildo.

Por isso, a comissão aprovou hoje requerimento de convocação para que Zenaide preste depoimento aos senadores. A oitiva ainda não tem data marcada.

"De vez em quando, quando surgiam os serviços para eu fazer, eu ia lá e fazia. Era quase todo dia estava pagando boleto, sacando dinheiro pra pagar", comentou ele.

"Olha, quando eu entregava o dinheiro a Zenaide, eu não... Quando eu devolvia algum valor, eu passava pra ela. Pra mim... Não sei onde ela guardava."

Ivanildo deveria ter sido ouvido na audiência de ontem, mas optou por se ausentar depois de obter decisão favorável no STF (Supremo Tribunal Federal). Liminar do ministro Kassio Nunes Marques havia desobrigado o seu comparecimento.

De ontem para hoje, a defesa do motoboy mudou de estratégia e ele decidiu comparecer ao colegiado por livre e espontânea vontade. O depoimento dele substituiu a oitiva que seria realizada com o advogado e dono da Rede Brasil de Televisão, Marcos Tolentino —que alegou ter sido hospitalizado em função de sequelas da covid-19.

Troca de depoentes na CPI ocorre após o advogado e dono da Rede Brasil de Televisão, Marcos Tolentino ter "mal súbito" - Pedro França/Agência Senado      Fonte: Agência Senado - Pedro França/Agência Senado      Fonte: Agência Senado
Troca de depoentes na CPI ocorre após o advogado e dono da Rede Brasil de Televisão, Marcos Tolentino ter "mal súbito"
Imagem: Pedro França/Agência Senado Fonte: Agência Senado

No total, saques somaram R$ 4,7 milhões

Os senadores da CPI cobram de Ivanildo esclarecimentos sobre os saques efetuados por ele nas contas da empresa e que chegam, no total, a R$ 4,7 milhões nos últimos dois anos. As informações foram detectadas em relatório do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) enviado à Comissão Parlamentar de Inquérito.

De acordo com o documento, a VTCLog movimentou de forma suspeita R$ 117 milhões desde 2019. O nome de Ivanildo é citado várias vezes no documento. Ele teria realizado saques em diversos momentos, sendo a maioria em dinheiro vivo e na boca do caixa.

Membros da CPI pretendem verificar se os fatos apontam para os crimes de corrupção e lavagem de dinheiro em relação aos contratos que a VTCLog possui junto ao Ministério da Saúde.

De acordo com os dados do Coaf, a testemunha foi responsável por aproximadamente 5% de toda movimentação suspeita detectada nos últimos dois anos (R$ 117 milhões).

Vice-presidente da CPI e autor do requerimento de convocação de Ivanildo, Randolfe Rodrigues (Rede-AP) descreve o motoboy como "aparente intermediário em esquemas duvidosos" da VTCLog.

"Chama a atenção a confiança que os donos da VTCLog depositaram em Ivanildo. Com vencimentos que não ultrapassam um teto de R$ 2.000 mensais, Ivanildo chegou a carregar em sua moto R$ 430 mil no dia 24 de dezembro de 2018, ironicamente, a poucas horas da noite de Natal daquele ano", diz Randolfe no texto.

A CPI aprovou requerimento para questionar o Coaf se as operações da VTCLog a partir de 2018 foram devidamente comunicadas ao órgão.

Contratada desde 2018

A VTCLog presta serviço para o governo federal desde 2018. Segundo linhas de investigação em curso na CPI da Covid, a empresa de logística pode ter sido contratada de forma irregular.

Também há suspeitas de que a firma teria relações com Roberto Dias, ex-diretor do departamento de logística do Ministério da Saúde. Ele foi demitido depois que seu nome foi citado como autor de suposta cobrança de propina para levar adiante negociação de eventuais 400 milhões de doses de vacina contra o novo coronavírus.

Até 2018, a logística de materiais como vacinas e medicamentos era feita no Ministério da Saúde por um órgão da própria pasta, a Cenadi (Central Nacional de Armazenagem e Distribuição de Imunobiológicos), que tinha contratos com várias empresas terceirizadas, entre elas a própria VTCLog.

Sob a justificativa de redução de gastos, o então ministro da pasta, o deputado federal Ricardo Barros (PP-PR) —hoje líder do governo Bolsonaro na Câmara e investigado na CPI— decidiu desmobilizar a Cenadi e promover uma licitação para concentrar em uma única empresa a logística do Ministério da Saúde.

A primeira colocada acabou inabilitada e a VTCLog assumiu o contrato com o Ministério da Saúde em março de 2018, no valor de R$ 97 milhões. O contrato é válido até 2023.

Na época, a VTCLog disse não ter qualquer relação com o ex-ministro. "Informamos que os contratos da empresa com o poder público são e sempre foram objetos de processos licitatórios devidamente fiscalizados pelos órgãos de controle", afirmou a empresa. Barros também nega ter cometido qualquer irregularidade.

Pedido de busca e apreensão de celular

A CPI da Covid aprovou hoje pedido de busca e apreensão do celular de Ivanildo.

Caso o pedido de busca e apreensão não seja chancelado pela Justiça enquanto o depoimento de Ivanildo ainda estiver em curso hoje no Senado, ele deve ser intimado para que disponibilize o aparelho celular à secretaria da comissão em até 24 horas.

Antes disso, os senadores Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e Simone Tebet (MDB-MS) fizeram um apelo para que Ivanildo entregasse de forma voluntária o celular e permitisse que fosse feita perícia em mensagens e ligações relacionadas somente a contatos da VTCLog. O celular seria devolvido ainda hoje a ele, afirmaram. Amparado legalmente, Ivanildo recusou.

O requerimento que prevê a busca e a apreensão, então, foi aprovado.

"Diante da negativa do senhor Ivanildo e da alta probabilidade de haver dados relevantes em seu celular, a exemplo de conversas em WhatsApp, localizações geográficas e telefonemas, a busca e apreensão do aparelho fornecerá informações essenciais para desvelar os exatos termos da atuação da VTCLog no contexto acima mencionado", diz trecho do texto.

Outro requerimento prevê que as empresas Oi, Vivo, Tim, Claro, dentre outras, enviem o histórico de localizações do número de telefone de Ivanildo entre 1º de janeiro de 2018 a 1º de setembro de 2021, no prazo de três dias úteis.

Quebra de sigilos

A comissão também aprovou pedido de quebra dos sigilos telefônico, fiscal, bancário e telemático de Ivanildo. As informações a serem entregues dizem respeito ao período de 2018 até o momento.

Ivanildo não é investigado pela CPI. No entanto, com as medidas, os senadores acreditam que os conteúdos do celular e das quebras de sigilo dele podem contribuir a esclarecer suposto esquema de corrupção envolvendo a VTCLog e integrantes do Ministério da Saúde.

Proteção da PF

A CPI aprovou pedido de proteção policial ao motoboy para o resguardar de possíveis ameaças. Na última quinta (26), o presidente da comissão, Omar Aziz (PSD-AM), enviou ofício ao diretor-geral da Polícia Federal, Paulo Maiurino, para que a corporação providenciasse com "urgência urgentíssima" a proteção de Ivanildo até o começo de seu depoimento à comissão.

"Há fundado receio, tendo em vista as graves suspeitas que pairam sobre a VTCLog e a relevância do mencionado depoimento para esta comissão, de que a testemunha venha a sofrer constrangimentos físicos ou morais que possam, de qualquer modo, obstar ou prejudicar a realização de seu depoimento", escreveu Aziz no pedido.