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Gestão Bolsonaro aprovou captação para livro sobre armas pela Lei Rouanet

Do UOL, em Brasília

11/05/2023 04h00

O governo Jair Bolsonaro (PL) aprovou a captação de verbas para um livro sobre a história das armas no Brasil por meio da Lei Rouanet, com a contrapartida de distribuição e palestras sobre o tema em escolas. A gestão de Lula (PT) suspendeu a iniciativa.

O que aconteceu?

Em dezembro de 2021, a então Secretaria Especial de Cultura, comandada pelo bolsonarista Mário Frias, autorizou a captação de recursos para o livro "Armas & Defesa: A História das Armas do Brasil", por meio do mecanismo de incentivo a projetos culturais do Pronac (Programa Nacional de Apoio à Cultura), mais conhecido como Lei Rouanet.

Naquele mês, o projeto conseguiu o investimento de R$ 336 mil vindos da empresa armamentista brasileira Taurus. O dinheiro foi transferido em março de 2022. Em dezembro do ano passado, a firma ainda tentou alocar mais R$ 86 mil na iniciativa.

Além do livro, o proponente, sócio da editora responsável pela obra, ofereceu como contrapartida palestras sobre o tema a estudantes maiores de 18 anos e a professores de escolas públicas.

A captação foi cancelada em abril deste ano, após avaliação da CNIC (Comissão Nacional de Incentivo à Cultura), já sob a gestão Lula. Entre os motivos apontados, estavam "aparente cunho publicitário" da obra e "clara apologia na utilização de armas".

O caso foi divulgado em primeira mão pela ministra da Cultura, Margareth Menezes, em entrevista ao UOL na semana passada.

Fragilidades no projeto

A captação foi aprovada em dezembro de 2021. A proposta foi feita por Rodrigo Cezar Moreira Kling, sócio da Alexa Editora, responsável pela publicação do livro.

A obra foi cadastrada sob interesse de "valor humanístico". Teve liberação para captar recursos em cinco dias, de 8 a 12 de dezembro —tempo relâmpago para este processo. Segundo os registros encontrados pelo Ministério da Cultura, não houve qualquer questionamento ou pergunta feita ao proponente.

Ao reavaliar a proposta, a CNIC e o Ministério da Cultura encontraram uma série de fragilidades:

  • Proposta rasa. No texto apresentado, o proponente não sustenta teoricamente o projeto, só lista uma série de prerrogativas na lei que possibilitariam seu financiamento. Tampouco oferece qualquer análise da importância cultural.
  • Classificação errada. "Os aspectos abordados em defesa de preservar os bens materiais e imateriais do patrimônio cultural e histórico brasileiro não justificam o enquadramento da temática na área de 'Humanidades'", diz a ata da reunião da CNIC que reavaliou a aprovação, à qual o UOL teve acesso.
  • Contrapartida social questionável. O projeto oferece "5 palestras gratuitas presenciais [em escolas públicas] em formato de book tour que também serão transmitidas ao vivo pelas redes", mas sem qualquer conteúdo programático ou projeto pedagógico.
  • Falta de explicações. Também havia poucos detalhes do conteúdo oferecido dentro do livro. Entre as especificações, havia, por exemplo, um capítulo "destinado a apresentar política pública do governo federal", um desvio da finalidade da lei, que não pode promover o Poder Executivo.
  • Sem prestação de contas. Quando o Ministério da Cultura reavaliou o projeto, certa de R$ 200 mil já haviam sido gastos pelo proponente desde dezembro de 2021, mas não havia nenhuma nota fiscal cadastrada no sistema. O acompanhamento dos gastos é uma das exigências da lei.
  • Possível conflito de interesses do patrocinador. Ao apresentar o projeto, o proponente anexou uma carta informando que a Taurus já estaria interessada. Como o projeto não apresentava detalhes, a CNIC achou necessário verificar se não havia estímulo à venda de armas, algo que seria vedado por lei, já que o financiamento vinha de uma empresa armamentista.

A CNIC recomendou a interrupção do projeto. Acatamos [Ministério da Cultura], interrompemos e pedimos uma série de informações. Qual a relação do patrocinado com o patrocinador? Qual o conteúdo das palestras apresentadas como contrapartida? Quem são as pessoas que vão dar essa palestra? Todas essas informações deveriam ter sido cobradas e não foram. O projeto foi aprovado de uma forma muito frágil.
Henilton Menezes, secretário de Economia Criativa e Fomento Cultural do Ministério da Cultura, ao UOL

Preocupação com apologia a armas

A contrapartida de palestras e distribuição dos livros nas escolas foi um dos pontos que mais chamaram a atenção dos avaliadores. Segundo Menezes, não havia qualquer método de que as apresentações seriam feitas num viés histórico e que não incorreriam em apologia ao uso de armas.

Na ata da reunião da CNIC, um dos conselheiros aponta que o projeto "se trata de uma clara apologia na utilização de armas como um suposto 'traço natural' da civilização humana, sendo que o projeto é patrocinado pela Taurus".

É uma clara apologia às armas, respaldada pela narrativa do governo anterior de estímulo ao armamento da população. A sinopse da obra, escrita pelo proponente, prevê a inclusão de capítulos dedicados às políticas públicas armamentistas adotadas, o que caracteriza um desvio de finalidade.
Henilton Menezes, em justificativa para a suspensão

20 dias para se explicar

Por enquanto, o projeto está congelado e com a conta bloqueada. Com decisão tomada no dia 24 de abril, o ministério deu o prazo legal de 20 dias para que Cezar Kling e a Editora Alexa respondam às questões levantadas. O prazo acaba no próximo final de semana. Até agora, não houve retorno.

Segundo Menezes, há algumas possibilidades para o livro e consequências:

  • Aprovação. Em caso de resposta de todos os questionamentos, apresentação das notas fiscais e argumentação coerente e respaldada em lei de que o projeto tem elementos culturais e históricos e não incorre em publicidade.
  • Devolução do dinheiro. Se eles responderem, mas as respostas forem insuficientes ou não tiverem respaldo na lei. Neste caso, seria constatada inconsistência ou uso indevido da verba. O proponente é obrigado a devolver todo o dinheiro captado.
  • Procurar o patrocinador. Até então, a Taurus não foi contatada pelo ministério. No entanto, se, na avaliação das respostas (ou na falta delas), for constatado pela pasta que houve "vantagem indevida" por parte da armamentista, esta pode ser chamada a se pronunciar.

O projeto começou a ser executado em dezembro de 2021. Estamos em maio de 2023 e não temos a menor ideia do que foi feito dele ainda. Então, simplesmente interrompemos e demos 20 dias para o proponente se defender. O conteúdo do livro está descrito de uma forma muito sem conteúdo, isso deveria ter sido abordado na hora da análise. Esse conteúdo deveria ser barrado imediatamente. Nós vamos aguardar, não vamos fazer nada antes de o prazo legal passar.
Henilton Menezes, secretário de Economia Criativa e Fomento Cultural do Ministério da Cultura, ao UOL

O que dizem os envolvidos no projeto

O UOL procurou o proponente Cezar Kling por telefone, a patrocinadora Taurus por meio de sua assessoria listada no site oficial e o deputado federal Mário Frias (PL-RJ) por WhatsApp, mas não teve o retorno de nenhum deles até a última atualização deste texto. O espaço está aberto para manifestações.

A reportagem não encontrou nenhum portal, endereço eletrônico ou conta em redes sociais da Editora Alexa. Os emails encontrados voltaram e os telefones não funcionaram.