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Jurista nega ter sido consultado em dossiê para golpe: 'Não conheço Cid'

Do UOL, em São Paulo

16/06/2023 19h57Atualizada em 16/06/2023 20h55

Ives Gandra da Silva Martins, doutor em direito, apareceu citado nos documentos que até então estavam sob sigilo na investigação da Polícia Federal sobre o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, mas nega que tenha prestado consultoria para Mauro Cid ou planos golpistas.

O que aconteceu:

Em entrevista ao UOL, ele nega que tenha contribuído para ideais golpistas. A espécie de dossiê, encontrado no celular de Mauro Cid, segundo o jurista, foi redigido em maio de 2017, para solucionar os questionamentos de um aluno do curso de Comando e Estado-Maior do Exército. A demanda seria para um projeto ordinário da disciplina.

Em uma troca de emails entre o major e o jurista, ao qual o UOL teve acesso, as datas do conteúdo, idêntico ao que estava sendo usado por Cid, são de maio de 2017.

O advogado afirmou não ter visto "nada que possa ter justificado eles considerarem essas minhas respostas" como favoráveis ao golpe de Estado, após a vitória do presidente Lula.

Ives Gandra também disse "conhecer a mentalidade" dos alunos militares e, por isso, ter afirmado desde o ano passado de que não haveria chance de uma virada antidemocrática. O jurista teve alunos como o ex-vice-presidente e senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS), Braga Netto, ex-candidato a vice na última chapa de Bolsonaro, e Tomás Paiva, comandante do Exército —os três são generais.

Eu conheço a mentalidade deles, quando eu dizia com toda tranquilidade, que não havia risco de golpe. [...] Agora, desse documento, não sei onde é que o CID [pegou], eu não o conheço, eu acho que ele não fez o curso, se tivesse feito, ele já seria general.

Troca de e-mails entre Ives Gandra e major que era seu aluno em 2017 - Material cedido ao UOL - Material cedido ao UOL
Troca de e-mails entre Ives Gandra e major que era seu aluno em 2017
Imagem: Material cedido ao UOL

Confira as perguntas e respostas que chegaram a Mauro Cid:

Major: A garantia dos poderes constitucionais está relacionada somente ao funcionamento independente e harmônico dos poderes executivo, legislativo e judiciário ou abrange as demais instituições constitucionais?

Ives Gandra: A resposta é no sentido de que só aos três poderes, visto que as demais instituições estão subordinadas aos três poderes.

Major: O emprego das Forças Armadas na garantia dos poderes constitucionais pode ocorrer em situação de normalidade ou apenas em Estado de exceção?

Ives Gandra: Pode ocorrer em situação de normalidade se no conflito entre poderes, um deles apelar para as Forças Armadas, em não havendo outra solução.

Major: Recentemente, devido os Jogos Olímpicos e Paralímpicos ocorridos em 2016 no Rio de Janeiro, o Governo Federal decretou a Política Nacional de Inteligência (PNI), conforme o Decreto No 8.793, de 29 de junho de 2016. Segundo este documento, fica evidenciando, no seu escopo, as principais ameaças à Segurança Nacional da nação brasileira: espionagem; sabotagem; interferência externa; ações contrárias à soberania nacional; ataques cibernéticos; terrorismo; atividades ilegais envolvendo bens de uso dual e tecnologias sensíveis; armas de destruição em massa; criminalidade organizada; corrupção; e ações contrárias ao estado democrático de direito (POLÍTICA NACIONAL DE INTELIGÊNCIA, 2016). Assim, o Sr acredita que essas ameaças podem interferir no funcionamento independente e harmônico dos poderes constitucionais? De que forma?

Ives Gandra: Teoricamente, enquanto as questões forem de segurança interna e estiverem no âmbito das policias militares, cabe a elas enfrentá-las, como a criminalidade organizada e a corrupção. Espionagem, sabotagem, interferência externa, ações contrárias à soberania nacional, ataques cibernéticos, terrorismo são de competência exclusiva das Forças Armadas. Tanto as FAs podem suprir as PMs, em suas insuficiências, como as PMs serem chamadas a colaborar com a FAs. No caso das FAs suprirem as PMs, ficam essas subordinadas às FAs. No caso das PMs colaborarem com as FAs, serão estas que comandarão as PMs. Tais fatores podem influir na independência e autonomia dos poderes, mas ai estaríamos em face de situação que poderia requerer a decretação do Estado de Defesa ou, em caso de generalização da crise, Estado de Sítio.

Major: Caso na pergunta anterior a reposta tenha sido negativa, qual seria(m) a(s) ameaça(s) que o Sr vislumbra o emprego das Forças Armadas em garantia dos poderes constitucionais?

Ives Gandra: São aquelas do artigo 142 da CF/88: inimigo externo ou crise entre poderes.

Major: A situação vivenciada no ano de 2016 em relação ao impeachment da então presidente Dilma Roussef, poderia ser caracterizado como um quadro de emprego das Forças Armadas na garantia dos poderes constitucionais? Por quê?

Ives Gandra: Não, visto que os artigos 85 e 86 da CF/88 ofertaram solução constitucional para a crise e foi o que aconteceu. Segue meu parecer favorável ao impeachment.

Major: Na visão do Sr, a implantação dos governos militares em 1964, foi com base na garantia dos poderes constitucionais? Por quê?

Ives Gandra: A implantação dos governos militares em 1964 foi uma imposição popular por força dos desmandos do Governo Jango e do desrespeito constitucional aos princípios que deveria obedecer, inclusive na hierarquia militar com indicação de oficial general de três estrelas para Ministro. Toda a imprensa foi favorável ao movimento, conforme demonstro em minha avaliação escrita para o TRE paulista, que lhe repasso.

Major: Qual é a diferença para o Sr do emprego das Forças Armadas para garantia dos poderes constitucionais e a garantia da lei e da ordem?

Ives Gandra: No primeiro caso, são os próprios poderes que estão em risco por sublevação popular ou por interferência externa ou mesmo por desobediência hierárquica, no segundo os poderes estão em conflito e se qualquer deles apelar, cabe às FAs intervirem.

Major: Para o Sr, como seria o emprego das Forças Armadas na garantia dos poderes constitucionais?

Ives Gandra: Explicado na resposta anterior.

Major: Realizando a pesquisa, verifiquei que poucos autores escrevem sobre o assunto e as fontes de pesquisas são escassas. Por que esse assunto é pouco divulgado?

Ives Gandra: Escrevi nos livros que lhe indiquei. De qualquer forma, a matéria é pouco examinada porque, nada obstante dos 4 presidentes eleitos após a CF/88, dois terem sido afastados pelo Congresso, as instituições funcionam bem. Por isto, nós, os constitucionalistas, chamamos os Título V de o "Regime Constitucional das Crises". E não tivemos nenhuma crise institucional no período, embora tivéssemos muitas crises políticas.

O que diz o relatório da PF:

No celular de Mauro Cid, constam um manifesto a favor do golpe, discussões sobre a GLO (Garantia de Lei e Ordem) e "questionamentos feitos ao Dr. Ives Gandra". A inclusão das respostas do advogado seria para estabelecer uma base de legalidade à tentativa antidemocrática.

As mensagens divulgadas revelaram que um golpe de Estado foi encorajado e um roteiro para a ação foi elaborado. Cid está preso desde o mês passado e se negou a falar quando depôs à Polícia Federal.

Cid teria reunido "documentos com o objetivo de obter o suporte jurídico e legal para a execução de um golpe de Estado", segundo análise da Polícia Federal.

O tenente-coronel também compilou uma coletânea que trata da atuação das Forças Armadas para "Garantia dos Poderes Constitucionais e GLO".

Cid ainda armazenou vídeos com declarações do jurista em trechos retirados do YouTube sobre o "Poder Moderador" e aplicação do art. 142 da Constituição Federal de 1988.