Diretrizes do governo federal dão margem para polícias não ligarem câmeras

As diretrizes do governo federal para o uso das câmeras corporais pelas polícias do país dão margem para os estados não aderirem à modalidade da gravação ininterrupta — considerada bem sucedida em programas em funcionamento. A avaliação é de especialistas em segurança pública ouvidos pelo UOL.

O que aconteceu

Modalidade de gravação que prevê acionamento por policial se aproxima do edital lançado pelo governo de São Paulo e criticado por analistas e gestores da área. A diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno, acredita que o Ministério da Justiça buscou elaborar uma norma que contemplasse modelos em funcionamento. "Mas, ao financiar projetos que incluam a modalidade de gravação por acionamento dos próprios agentes com recursos do fundo, eles ratificam o edital de São Paulo."

"Isso pode direcionar as escolhas de policiais militares de todo o país", complementa Samira. "Prever essa possibilidade faz com que muitos estados façam dessa forma, uma vez que atendem às diretrizes", complementa. Ela defence que a gravação ininterrupta alcança resultados mais efetivos no combate à violência.

Gravação interrompida por agentes é "ponto sensível" entre as diretrizes. Para o diretor de Litigância e Incidência da Conectas Direitos Humanos, Gabriel Sampaio, a portaria lançada pelo Ministério da Justiça é "ampla". Ele diz que "um modelo que seguisse a gravação ininterrupta poderia ter sido mais enaltecido".

Há indícios de que policiais não acionam câmeras em momentos importantes, segundo a diretora-executiva do FBSP. "Muitas imagens importantes de São Paulo, no âmbito da Operação Escudo, foram obtidas com base em vídeos de rotina. Só foi possível chegar aos PMs denunciados em duas ocasiões pelo MP graças aos vídeos de rotina", afirma Samira.

Sampaio afirmou que deve haver uma cobrança da sociedade em relação ao governo federal. "Se houver um movimento nacional ou de outras polícias para se aproveitar de brechas das normas, sem a gravação ininterrupta, estaremos vigilantes", afirmou.

Havia uma expectativa de que o governo federal fosse um pouco mais ousado e criasse uma diretriz recomendando a gravação ininterrupta.
Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Desligamento para momentos de privacidade, diz ministério

Na divulgação da portaria, Lewandowski chamou a atenção para o artigo 10, que prevê três modalidades de gravações. A primeira é por acionamento automático; a segunda, por acionamento remoto (por meio do sistema ou da autoridade competente); e a terceira, por acionamento dos próprios integrantes dos órgãos de segurança. "As três modalidades poderão ser usadas exclusivamente ou combinadas", disse.

Continua após a publicidade

O ministro pontuou que o desligamento por parte dos agentes deve ocorrer somente em casos que as gravações possam ferir a privacidade do agente. "Esse valor de privacidade está protegido porque são valores constitucionais que abarcam servidores", avaliou. "A portaria estabelece que o acionamento deve ser preferencialmente automático."

O chefe da pasta afirmou que os estados que quiserem verbas federais para as câmeras terão de seguir as diretrizes. Os programas estaduais devem ser financiados com recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública ou do Fundo Nacional Penitenciário.

Diretrizes eram esperadas desde o ano passado

Apesar da questão sobre ativação das câmeras, a iniciativa de lançar a portaria foi elogiada. "É um importante instrumento jurídico e normativo para que tenhamos recomendações específicas em âmbito estadual e para que se tenha controle da atividade policial, produção de provas e proteção dos policiais", diz Sampaio.

Diretrizes eram esperadas desde o ano passado. A abertura para consulta pública ocorreu em dezembro de 2023 e se encerrou em 26 de janeiro. "As diretrizes eram muito esperadas porque várias polícias já implementaram ou estão implementando pilotos. A ausência de uma norma federal faz com que cada estado implemente de um jeito", destaca Samira.

Defensoria participou de consulta pública e fez recomendações à pasta. O Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da entidade havia elaborado um documento com recomendações à pasta. Entre elas, está a gravação ininterrupta das imagens.

Continua após a publicidade

Gravação sem interrupções não significa desconfiança da atividade policial.
Fernanda Balera, defensora pública

Impacto sobre edital de Tarcísio

O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos) disse que edital estadual não diverge de portaria federal. "Não tem nenhuma colisão entre a diretriz do Ministério da Justiça e o nosso edital", afirmou durante agenda.

Mas a portaria federal recomenda armazenamento de imagens por 90 dias, no mínimo. O edital de São Paulo prevê armazenamento de imagens de vídeos de rotina por 30 dias e de gravações intencionais por 120. Hoje, o tempo de armazenamento é de 60 dias e um ano, respectivamente. "O governo pode optar por não seguir as diretrizes, mas, para seguir, teria de fazer essa mudança", afirma Samira.

Petição protocolada na segunda-feira (27) alerta para risco de precarização do programa paulista. A Defensoria Pública de São Paulo e outras entidades ligadas à Segurança Pública recorreram ao STF (Supremo Tribunal Federal) para pedir a revisão do edital que prevê mudanças na contratação de câmeras corporais para a Polícia Militar do estado.

Diretrizes não enfraquecem pedido de revisão de edital de São Paulo feito por entidades, segundo as entidades. "Fizemos a petição baseados na experiência da polícia de São Paulo, que já provou sua capacidade de mostrar resultados. O documento é contra uma retrocesso em São Paulo", diz Sampaio. "A portaria trata de um contexto nacional, com realidades diferentes. Nossa demanda continua forte para que a maior polícia do pais não tenha um retrocesso na produção de provas."

Continua após a publicidade

Deixe seu comentário

Só para assinantes