'Inferniza a vida dele': pressão por golpe teve protesto na casa de general

O envio de mensagens a comandantes, uma carta ao chefe do Exército, uma oração e manifestações em frente a quarteis foram algumas das estratégias usadas por conspiradores para pressionar militares a aderir à tentativa de golpe em 2022, segundo investigação da PF.

O que aconteceu

"Vai passar para a história como covarde traidor da pátria?", perguntou militar da reserva a comandante do Exército. Segundo a PF, a mensagem foi enviada por Laércio Vergílio a Freire Gomes (que comandava o Exército) em 14 de dezembro de 2022, véspera da data escolhida para tentativa de golpe. Ambos são generais.

Vergílio se valeu da intimidade com Gomes no primeiro contato. Em mensagem enviada ao comandante do Exército em 6 de dezembro de 2022, o general da reserva lembra que Gomes foi seu instrutor em curso de formação e que, juntos, os dois fundaram o Destacamento Alfa Ômega (unidade de contraterrorismo do Exército).

O general da reserva Mário Fernandes pressionou pela adesão de Gomes a golpe em 7 de novembro. Segundo a PF, na mensagem, o general se apresenta ao comandante do Exército como "eterno aluno e subordinado" e afirma que conta com "evento disparador, como no passado" para ação. "É agora ou nunca mais, comandante, temos que agir", diz ele.

Até "oração ao golpe" serviu para pressionar. A investigação mostra que, em 3 de novembro, o padre José Eduardo Silva encaminhou a Gilson Azevedo um texto que pedia a brasileiros que incluíssem 17 generais em suas preces para que eles tivessem "coragem de salvar o Brasil" e "agissem com consciência histórica".

Carta de oficiais sinalizando apoio ao golpe foi enviada a comandante do Exército. "O Exército nunca abandonou o povo e nunca o fará", diz um trecho do texto que, segundo a investigação, foi vazado para aumentar a pressão sobre o comando. A estratégia de vazar o conteúdo da carta foi definida em reunião em 28 de novembro.

Documento apresentado pelo PL à Justiça Eleitoral integrava plano. Segundo a PF, representação que pedia anulação de parte dos votos por problemas nas urnas visava intensificar protestos em frente a quarteis para pressionar militares, já que "investigados tinham ciência de que 'argumentos técnicos' eram falsos".

Os investigados agiram de forma coordenada com influenciadores digitais, aderentes ao espectro político do então presidente Jair Bolsonaro, com a finalidade de incitar parcela da população a aderir ao intento golpista, manter coesas as manifestações antidemocráticas em frente às instalações militares e ainda servir como um veículo de pressão para que o Exército desse o respaldo do braço armado do Estado para a consumação da ruptura institucional.
Polícia Federal, no relatório final da investigação sobre a tentativa de golpe

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Reuniões e redes sociais para pressionar

Reuniões foram instrumento de pressão. Para a PF, encontro de oficiais no apartamento de Walter Braga Netto (vice na chapa de Bolsonaro) em 28 de novembro e conversas dos comandantes das três Forças com Bolsonaro (em 7 de dezembro) e com o ministro da Defesa (em 14 de dezembro) visavam adesão da cúpula ao golpe.

Segundo a PF, almirante, brigadeiro e general foram apresentados a decreto que viabilizava golpe na reunião de 14 de dezembro. O texto foi apresentado pelo general Paulo Sérgio Nogueira, que estava à frente da pasta da Defesa à época. Segundo depoimentos, só o almirante Garnier, da Marinha, sinalizou estar de acordo com ideia.

"Quem se recusou a dar o golpe não fez mais do que a obrigação", diz historiadora. Para Adriana Marques, cientista política e professora do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da UFRJ, o detalhe mais surpreendente da trama revelada pela PF é o fato de a maior parte do alto comando estar em cima do muro em relação à tentativa de golpe à época. Ela destaca ainda outro aspecto:

A leitura do relatório induz à dicotomia entre golpistas e legalistas, mas acho que a coisa é mais complexa do que isso. Havia outras questões que influenciaram até mais na adesão ou não dos militares à tentativa de golpe, como a convivência de alguns com o núcleo do poder político, por exemplo.
Adriana Marques, cientista política e professora do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da UFRJ

Investigação cita, pelo menos, quatro postagens em redes sociais que tinham militares como alvo. Todas aconteceram após a eleição e instigavam generais a aderirem ao golpe. Num dos casos, o tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens de Bolsonaro, diz que um dos posts ficou "excelente", em troca de mensagens.

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Precisamos clamar ao general Freire Gomes. Eu posso falar que ele é a peça fundamental pra que tudo aconteça. Então, ele não é melancia. Ele não é uma pessoa do mal. Ele não é nada. Ele é do nosso lado.
Bismak Fugazza, influenciador bolsonarista, em vídeo divulgado no Instagram em 12/12/2022

Brigadeiro saiu das redes sociais

Comandante da Aeronáutica suspendeu conta nas redes sociais por causa de ataques. Em depoimento à PF, o brigadeiro Baptista Junior relatou que, após negar adesão ao golpe em reunião no Ministério da Defesa, em 14 de dezembro de 2022, passou a ser chamado de "melancia" e "traidor da pátria" na internet.

"Senta o pau no Baptista Junior", escreveu Braga Netto em 15 de dezembro. A mensagem foi enviada pelo vice na chapa de Bolsonaro ao capitão Ailton Barros. "Inferniza a vida dele e da família", disse Netto, um dia após sugerir que as pressões sobre Freire Gomes continuassem, em conversa com o mesmo interlocutor.

Conspiradores monitoravam presença de bolsonaristas em frente à casa de chefe do Exército. Segundo PF, Braga Netto mandou foto do local a Barros em 14 de dezembro. Em depoimento, Gomes afirmou que "sempre havia manifestações" na região no período. Era outra forma de pressioná-lo a apoiar o golpe.

Falta de apoio internacional

Falta de apoio internacional foi fator decisivo para frustrar golpe, diz historiador. "O militar no Brasil não respeita Congresso ou Supremo, mas ouve o que os militares americanos estão pensando", afirma João Roberto Martins, professor da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos). O também historiador Carlos Fico destaca outros dois pontos que pesaram:

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O paulatino empoderamento do STF após a Constituição de 1988 aumentou sua força na esfera pública e diminuiu as chances de golpe. Além disso, a conjuntura política se tornou dramática desde a militarização do governo, com Temer, e causou um mal-estar que, com Bolsonaro, se transformou em uma ameaça de golpe.
Carlos Fico, professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

Indiciamento por tentativa de golpe não resolve intromissão de militares na política. Segundo Fico, um novo governo de direita pode trazer o problema à tona de novo.

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