Laudo do governo aponta dez falhas em respiradores comprados pelo Pará
Quatro dias depois de receber 152 respiradores de uma empresa brasileira que intermediou os aparelhos da China, um laudo elaborado pelo próprio governo do Pará revelou que os equipamentos apresentaram dez tipos diferentes de falhas, o que inviabilizou o uso para tratar pacientes com a covid-19 em Unidades de Tratamento Intensivo (UTI) no estado. São 3.980 óbitos e 63.405 casos confirmados da doença.
O documento está nos autos do processo ingressado na Justiça Federal pela Procuradoria Geral do Estado (PGE) do Pará, que requereu a suspensão da investigação da Polícia Federal (PF) sobre as compras alegando que os recursos usados eram do Tesouro Estadual e não da União. O custo total do negócio foi de R$ 50,5 milhões e metade disso, R$ 25,2 milhões, foi paga antecipadamente.
A aquisição gerou uma operação deflagrada hoje pela PF e Ministério Público Federal (MPF) contra o governador Helder Barbalho (MDB) e outras 14 pessoas para apurar supostos desvios de recursos e fraudes na compra dos respiradores. O número 2 da Saúde no Pará estava com R$ 750 mil em casa e foi exonerado.
Segundo o laudo, de 8 de maio, os equipamentos apresentaram dez falhas. A data é a mesma do comunicado do governo paraense sobre as falhas. Na ocasião, no entanto, não foram detalhadas a quantidade e quais eram esses defeitos nos aparelhos.
O documento é assinado pelo engenheiro em eletrônica Celso Mansueto de Oliveira Vaz, que se identifica no laudo como servidor da Secretaria de Saúde Pública do Pará, mestre em engenharia industrial e especialista em engenharia biomédica.
De acordo com o profissional, o respirador apresentou falhas nos seguintes itens:
- Falta de alarmes para identificar quando há desconexão com a rede elétrica, rede de gases e do paciente;
- Equipamento não possuía bateria interna, o que o faria desligar em caso de falta de energia;
- Fração de oxigênio descalibrada, ocasionando travamento e alteração no ventilador;
- Os quatro parâmetros do ventilador mecânico eram desconexos, isto é, não eram os mesmos ofertados ao paciente;
- Falha no ciclo respiratório, podendo causar barotrauma, que é uma lesão no pulmão relacionada à pressão de ar;
- Impossibilidade de limpeza e esterilização;
- Não possuía monitorização do oxigênio;
- Ausência de autoteste do aparelho;
- A unidade de medida de pressão fora dos parâmetros brasileiros, o que poderia induzir o profissional ao erro; e
- Impossibilidade de acompanhar a curva "fluxo X tempo" do paciente.
"Diante das dificuldades expostas, recomendamos que o equipamento não seja utilizado pela rede estadual", sentenciou o profissional que atestou os respiradores.
Na ocasião, do anúncio de que os respiradores não serviriam para ajudar salvar a vida dos pacientes com coronavírus no Pará, o governador Helder Barbalho informou que exigiu da fábrica que entregasse os 400 respiradores em pleno funcionamento, com urgência e ajuste correto, e o governo devolveria os 152 que estavam com problema.
Dois dias depois, a Justiça bloqueou os bens da empresa e dos donos.
Empresa não tinha experiência na área da saúde, diz PF
As falhas podem ter relação com a falta de experiência da empresa com o ramo de saúde. A polêmica gerou a abertura de um inquérito pela Polícia Federal. Em 30 de abril, um relatório sobre o histórico da empresa elaborado pela corporação constatou que a contratada não tinha nenhum histórico de fornecimento de materiais hospitalares.
O ramo principal da empresa mostra que a experiência era focada no segmento atacadista de informática. A tese dos agentes da Polícia Federal foi reforçada ao analisarem que a contratada também não forneceu equipamentos hospitalares para outros estados ou para a União. O Pará seria o primeiro.
"Nas bases de dados da Receita Federal foram localizados CNAES [Classificação Nacional de Atividades Econômicas], aparentemente, divergentes da atividade de equipamentos hospitalares. Ressalta-se que não foram localizados outros registros em que a SKN constou como fornecedora de equipamentos para outros entes governamentais", conclui o relatório.
Pará dispensou respiradores mais baratos
Na cotação de preços realizada pela Secretaria de Saúde do Pará revela que foram dispensados orçamentos mais baratos de demais empresas sobre respirados do mesmo modelo, o ventilador pulmonar microprocessado.
O Pará pagou R$ 126 mil orçado por cada respirador, o que deu o total de R$ 50,4 milhões.
Se tivesse optado por outros orçamentos da própria cotação de preço da dispensa de licitação, a economia giraria entre R$ 18 milhões, caso adquirisse o respirador de R$ 80 mil; a R$ 3,6 milhões, se optasse pelo equipamento R$ 116 mil, o valor mais próximo do desembolsado.
Por outro lado, o governo negou o mais caro, de R$ 209 mil, que daria R$ 83 milhões.
Em outro relatório, a Polícia Federal comparou o valor pago pelo Pará com os preços desembolsados pelo Ministério da Saúde, demais estados e prefeituras do próprio estado. O resultado apontou um suposto superfaturamento.
"No caso concreto em análise, aquisição de ventiladores pulmonares pelo governo do Pará, verifica-se uma variação positiva de 80% no preço de aquisição, se comparado ao maior valor contratado, dentro do escopo da pesquisa realizada durante e elaboração desta Informação Técnica", atestou o documento.
Em 8 de maio, o secretário de Saúde do Pará, Alberto Beltrame, negou o superfaturamento.
"Hoje vivemos o verdadeiro cartel, que faz leilão de equipamentos, brincando com a vida de todo mundo. O estado do Pará vem zelando pelo seu dinheiro, comprando respiradores de verdade a 126 mil reais. Tem estado que está pagando 180, 160, 200 mil reais. Essa é a realidade de uma grave crise", declarou o secretário, na ocasião.
Empresa recebeu 72 horas após emitir nota
Mesmo com indícios de sobrepreço, os autos mostram que a empresa emitiu nota fiscal para respiradores a fim de receber R$ 25,2 milhões adiantados um dia antes de a Secretaria de Saúde formalizar o processo de dispensa de licitação.
A empresa, de acordo com os documentos, emitiu a nota em 25 de março, mas o governo paraense abriu o processo de dispensa somente no dia seguinte. A nota de empenho, que é a reversa do dinheiro, ocorreu no mesmo dia. Em apenas 72 horas, a empresa recebeu o valor em sua conta corrente, revela o extrato, datado de 27 de março, por volta das 11h.
O pagamento se deu apenas quatro dias depois de Helder Barbalho assinar um decreto flexibilizando as compras governamentais em tempos de pandemia. Além disso, o extrato do processo de dispensa de licitação ocorreu apenas em 6 de abril.
Outro lado
O UOL questionou o governo do Pará sobre cada um dos itens. A Secretaria de Saúde informou que iria se posicionar, mas ainda respondeu.
Mais cedo, em nota, o governo do Pará disse que "em nome do respeito ao princípio federativo e do zelo pelo erário público, reafirma seu compromisso de sempre apoiar a Polícia Federal no cumprimento de seu papel em sua esfera de ação".
"Informa ainda que o recurso pago na entrada da compra dos respiradores foi ressarcido aos cofres públicos por ação do governo do estado. Além disso, o governo entrou na justiça com pedido de indenização por danos morais coletivos contra os vendedores dos equipamentos. O governador Helder Barbalho não é amigo do empresário e, obviamente, não sabia que os respiradores não funcionariam."
Horas depois, pelas redes sociais, em uma sequência de postagens, o governo reafirmou que pagou preços baixos pelos respiradores e negou que usou os equipamentos. O poder executivo investigado complementou que denunciou o caso à Polícia Civil e que conseguiu a devolução do dinheiro pago antecipado.
Em sua conta do Twitter, o governador, que está com as contas bloqueadas em razão das compras, disse que não é amigo do empresário "e, obviamente, não sabia que os respiradores não funcionariam".
Em um vídeo gravado no começo de maio, Helder Barbalho disse que optou por comprar os respiradores de uma empresa chinesa porque não havia como adquirir de uma brasileira com pronta entrega.
Ele declarou ainda que o preço era o "menor do Brasil" e que a empresa chinesa queria que o estado pagasse 100% de forma antecipada, mas que o governo só pagou 50%.
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