Fronteiras não devem deter ciência, diz chefe da ButanVac e da CoronaVac
No fim de março, o Instituto Butantan anunciou o desenvolvimento da ButanVac, uma vacina que deve ser totalmente produzida no Brasil. Agora, o instituto prepara a documentação que deve ser entregue à Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para obter autorização e dar início aos ensaios clínicos em seres humanos.
Diretor médico de pesquisa clínica do Instituto Butantan, o médico colombiano Ricardo Palácios é quem chefia pesquisas da ButanVac —que chama de "corona-huevo" (corona-ovo), por ser produzida em ovos de galinha—, da CoronaVac e do soro anticovid. Tímido, apareceu poucas vezes nas coletivas do governo estadual e teve de pedir ajuda a um amigo para melhorar a postura diante das câmeras. "É que não costumamos trabalhar com holofotes. Para mim, particularmente, é estranho, é alheio", disse, em entrevista ao UOL.
Nascido em Bogotá, ele estudou medicina na Universidad Nacional de Colombia em 1995. Veio para o Brasil em 2002 para dar sequência aos trabalhos como pesquisador na Universidade Federal de São Paulo. Entrou no Butantan em 2011 para ajudar no desenvolvimento de uma vacina contra o H1N1, e por lá ficou.
Em entrevista ao UOL, ele falou sobre o desenvolvimento de vacinas e remédios contra a covid-19. Leia os principais trechos:
UOL - Por que você escolheu o Brasil?
Ricardo Palácios - Todos nós que trabalhávamos com doenças infecciosas tivemos o HIV como "escola". Na época, o Brasil era um país-exemplo para o mundo, havia um pioneirismo do Brasil no trato do HIV com retrovirais, e outra coisa inacreditável é o Sistema Único de Saúde. As pessoas aqui não têm noção de como o SUS é incrível e deveria ser um orgulho. Eu contar que você vai num hospital e não tem um caixa, onde você paga. Você conta isso lá fora, não só na Colômbia, e as pessoas perguntam: "Como assim lá não tem caixa?". Mas eu me apaixonei pelo Brasil pelas pessoas, principalmente por Minas Gerais, quando fui a um evento científico. As pessoas, a comida, o trato. Me senti muito em casa.
Você coordena as pesquisas do soro anticovid, CoronaVac e ButanVac. Há outros projetos científicos que você também está desenvolvendo?
Sou encarregado de todos desenvolvimentos clínicos do Butantan. No portfólio, temos uma vacina da dengue, que está bem avançada —até o fim do ano esperamos ter dados definitivos, é uma vacina desafiadora. Temos uma vacina da influenza tetravalente, que vamos entrar em testes ainda este mês. Também temos a CoronaVac e a nova vacina que internamente nós chamamos de "corona-huevo", porque é uma vacina feita em ovo. A gente não gosta muito do nome ButanVac, não. E temos a vacina de chikungunya, que estamos fazendo em parceria com [a farmacêutica francesa] Valneva.
O governador João Doria (PSDB-SP) anunciou a ButanVac como "100% brasileira", e isso causou um ruído com os parceiros internacionais da vacina. Como está a relação com eles após a fala do governador?
Nós temos domínio completo da produção no Butantan, mas, às vezes, uma postura pessoal que eu tenho e me alegro de ter é: esses desenvolvimentos científicos independem de nacionalismos. Nós, os cientistas que trabalhamos nisso, entendemos que as fronteiras nacionais são linhas arbitrárias que não têm detido a pandemia e não devem deter a ciência. Eu destacaria o contrário: a colaboração internacional que nos permitiu ter acesso à vacina. Podemos dizer que a vacina é 100% brasileira a partir de uma colaboração 100% internacional, que temos muito orgulho de participar. Mas os parceiros entenderam que a fala do "100% brasileira" dizia respeito apenas ao processo produtivo.
Já estão estabelecidos os critérios para os testes da ButanVac em humanos?
Não posso dar detalhes porque não estão 100% decididas. A boa notícia que já temos e que fará ela avançar mais rápido é que os outros dois países, que produzem vacinas com princípios análogos, Tailândia e Vietnã, já começaram estudos de fase 1 e ela está demonstrando perfil de segurança muito bom. Faz lembrar muito o perfil de segurança da CoronaVac. Ainda é precoce para porcentagem de eficácia. Mas a expectativa é muito boa. Vale a pena destacar desse consórcio é a generosidade dos pesquisadores de abrir mão dos royalties para o desenvolvimento do produto. Agora, que existe essas discussões de quebra de patente, de preço, mostra que há outros modelos que podemos trabalhar e conseguimos fazer projetos muito mais interessantes.
Quando a ButanVac estará apta para ser aplicada?
Hoje, sabemos muitíssimo mais sobre o vírus, como as pessoas respondem à vacina. Mas temos um mundo em que há diferentes variantes de preocupação. Então, a incorporação desses mecanismos para poder avaliar a vacina dessas variantes faz que o protocolo tenha complexidades diferentes. Não é um atraso, faz parte da estratégia de pesquisa. Nós precisamos entregar a segunda parte dos documentos à Anvisa. Essa vacina a gente entende que pode virar um suprimento internacional. A expectativa de distribuição é ótima. O acesso à vacina seria restrito por muitos meses e anos, nossa esperança é que essa vacina possa estar garantindo suprimento aos países que precisarem. CoronaVac e ButanVac não concorrem, podem ser produzidas ao mesmo tempo. Para o país e para o mundo, ela traz esperança.
Um estudo apontou que a variante que surgiu em Sorocaba, no interior de São Paulo, seria mais resistente à CoronaVac. O que será feito para ajustar a vacina a essa mutação?
A mutação em questão é análoga à mutação B1351, que foi identificada na África do Sul. Foi identificada em Sorocaba, no interior de São Paulo, em uma pessoa que não teve contato com viajantes, nem saiu do país. Isso está relacionado com um fenômeno chamado evolução convergente. É parte do processo de adaptação do vírus em uma espécie, o vírus começa a mutar, e essas mutações trazem mais oportunidades de sobreviver. Como o vírus começou recentemente a infectar seres humanos, ele ainda está se adaptando. É possível que mutações parecidas estejam acontecendo em outros lugares do mundo. Nós temos uma resultado preliminar no qual existe uma redução da capacidade de neutralização da CoronaVac nessa variante, não é uma redução muito grande, mas há um grau de redução. Isso tem acontecido com todas as outras vacinas neste momento também. Isso não significa que não funciona, ainda há capacidade de neutralização, só não é com a mesma intensidade que com outras variantes. Estamos acompanhando, mas com certeza nós levaremos muito em consideração essa variante para o próximo desenvolvimento e atualização das vacinas.
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