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Os 7 erros que explicam o fracasso brasileiro em frear o avanço da covid

Ato em Copacabana em memória dos 500 mil mortos de covid no Brasil  - JORGE HELY/FRAMEPHOTO/ESTADÃO CONTEÚDO
Ato em Copacabana em memória dos 500 mil mortos de covid no Brasil Imagem: JORGE HELY/FRAMEPHOTO/ESTADÃO CONTEÚDO

Carlos Madeiro

Colaboração para o UOL, em Maceió

24/07/2021 04h00

O Brasil tinha elementos de sobra para dar uma boa resposta à pandemia. Um exemplo é a gratuidade e a capilaridade do SUS (Sistema Único de Saúde). Ou os êxitos —reconhecidos mundialmente— dos programas nacional de vacinação e de controle do HIV/Aids.

Mas, passado um ano e meio, o país beira as 550 mil mortes —o equivalente a 13% dos 4,2 milhões de mortos no mundo, tendo apenas 2,7% da população.

O UOL ouviu especialistas para tentar entender quais foram os maiores erros no combate à doença para estarmos numa situação tão dramática. Em sete pontos, eles listam os fracassos.

1- Negacionismo

No começo, para quem tivesse "histórico de atleta", a covid-19 seria uma "gripezinha", disse o presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Desde aquele momento, a gravidade da pandemia foi minimizada pelo chefe da República, que deixou de seguir as recomendações científicas, como a necessidade de lockdown nacional e o uso de máscaras. Medidas essenciais para preservar vidas ficaram de lado.

"Diria que isso foi um outro vírus, que matou tanto quanto o vírus original", diz o médico, pesquisador e neurocientista Miguel Nicolelis.

O epicentro da tragédia foi não ter reconhecido a gravidade do problema ainda no início; de não ter criado um comitê nacional; de não ter um projeto de comunicação claro à população; de se recusar a fazer um lockdown ainda em março de 2020, começando pelas grandes capitais. O começo de qualquer tragédia é ocultar a verdadeira gravidade.
Miguel Nicolelis, pesquisador

Durante a pandemia, integrantes ou aliados do governo chegaram a insinuar absurdos como a suposta falsificação de declarações de óbitos e que cidades estariam enterrando caixões vazios para criar uma comoção pública.

"Aqui tivemos passeatas contra lockdown, pessoas invadindo hospitais, atacando pesquisadores e médicos. Esse negacionismo custou a vida de muita gente. Quantos seguidores do nosso presidente não acreditaram nas propagandas erradas dele e se intoxicaram com cloroquina? Quantas não deixaram de usar máscaras? Pagamos um preço altíssimo", diz.

Nicolelis afirma que, negando a ciência, o governo deixou de agir para salvaguardar o povo. "O fato de não agir mata também. Podemos falar de uma omissão de socorro gigantesca. Basta ver o número proporcional de mortos no Brasil."

Festa clandestina em Manaus no final de dezembro, quando cidade tinha hospitais lotados - Carlos Soares/SSP-AM/Divulgação - Carlos Soares/SSP-AM/Divulgação
Festa clandestina em Manaus no final de dezembro, quando cidade tinha hospitais lotados
Imagem: Carlos Soares/SSP-AM/Divulgação

2 - Mentiras viraram outra epidemia

Qualquer pessoa que use um aplicativo de mensagens recebeu informações erradas: máscaras podem fazer mal, lockdown aumenta a proliferação do vírus, cloroquina (ou outro remédio) cura covid, vacina faz mal. A disseminação de notícias falsas, até por canais oficiais, teve papel crucial para alavancar a pandemia.

"O que a gente tem vivido no Brasil, assim como a covid, é uma pandemia da desinformação, que chamo de infodemia", explica a sanitarista Bernadete Perez, vice-presidente da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva).

Com informações contraditórias, em muitos momentos a população ficou em dúvida sobre em quem poderia confiar.

A informação e comunicação ampla era de fundamental importância para dar capacidade de resposta às pessoas diante do risco de suas próprias vidas.
Bernadete Perez, vice-presidente da Abrasco e sanitarista

Com um país de tamanho continental, o investimento na comunicação deveria ter ocorrido pela atenção primária de saúde. "Deveríamos ter trabalhado a partir da orientação familiar e comunitária", diz.

3 - Falta de coordenação nacional

A falta de convicção da gravidade no poder central fez com que o país enfrentasse a pandemia sem um plano nacional de combate ao novo coronavírus. "Não tivemos uma coordenação nacional que previsse respostas de base comunitária. Nós poderíamos levar a saúde para um nível mais micro, atuar em todos locais", afirma o epidemiologista Antônio Lima Neto, da Unifor (Universidade de Fortaleza).

A falta de planejamento, ele cita, levou à demora no envio de insumos aos rincões do país. "Não tivemos equipamentos de proteção individual suficientes para levar equipes às comunidades", relata.

Ele destaca que o SUS funcionou como um redutor da tragédia. "Mas poderia ter respondido de maneira mais abrangente, mais efetiva, se tivéssemos tido o apoio necessário conjuntural, que vai desde a Presidência da República, passando pelo Ministério da Saúde."

15 jan. 2021 - Pacientes de Manaus chegam a Teresina após colapso no AM - Lucas Oliveira - Lucas Oliveira
15 jan. 2021 - Pacientes de Manaus chegam a Teresina após colapso no AM
Imagem: Lucas Oliveira

4 - Testagem, rastreamento e vigilância falhas

Não houve um protocolo para rastreamento de casos. Segundo o virologista da Universidade Feevale (RS) Fernando Spilki, esse tipo de ação teria contido surtos em suas fases iniciais. "A testagem estratégica, incluindo contatos, iria eliminar pequenas cadeias de transmissão no início da pandemia ou em outros momentos com baixa no número de casos", diz.

"Você pode não conseguir aplicar em nível nacional, mas seria muito relevante em surtos familiares, em locais de trabalho. São eles que se transformam em motores da pandemia."

Seguramente é a testagem feita com estratégia que controla a disseminação de surtos locais, que se transformam em grandes cadeias de transmissão.
Fernando Spilki, virologista

Ele diz que o país poderia ter investido mais em vigilância genômica para conhecer melhor o SARS-CoV-2 que circula no país. "O país tem estrutura e expertise para fazê-lo, está comprovado. Precisamos de aporte de recursos para intensificar isso", completa.

5 - Busca pela "imunidade de rebanho"

Ao se negar a fazer lockdowns, o governo federal deixou claro que defendia a tese de que o vírus deveria circular e contaminar pessoas até criar um limiar de proteção natural que faria a epidemia acabar.

"A ideia de um limiar de proteção provocado pelo próprio contágio foi observada em casos históricos; porém, em sua maior parte, com baixa letalidade e nunca foi preconizada como estratégia para se lidar com pandemias", explica Alcides Miranda, professor de saúde coletiva da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

A ideia, além de ineficaz (porque a imunidade adquirida é temporária), é criticada. "A opção é perversa porque manobra como uma margem 'tolerável' de óbitos evitáveis. Ou seja, o custo de vidas humanas é dimensionado como uma moeda de troca para a manutenção da normalidade econômica", afirma.

6- Kit covid e "UTIterapia"

15.jul.2021 -  Atendimento de pacientes na UTI Covid do Hospital de Campanha AME Barradas, em São Paulo - Mister Shadow/Estadão Conteúdo - Mister Shadow/Estadão Conteúdo
15.jul.2021 - Atendimento de pacientes na UTI Covid do Hospital de Campanha AME Barradas, em São Paulo
Imagem: Mister Shadow/Estadão Conteúdo

Com o vírus correndo solto, a única coisa a fazer seria tratar os brasileiros doentes com remédios. O "kit covid" foi a solução dada a casos iniciais; e a abertura de leitos de UTI (Unidades de Terapia Intensiva) seria a garantia para tratar pacientes graves.

As duas estratégias, porém, são equivocadas, segundo a infectologista e professora de doenças tropicais da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) Vera Magalhães.

"Quiseram evitar as medidas não farmacológicas e utilizaram, sem comprovação científica, medicações que o mundo já demonstrava ser completamente ineficazes", afirma.

Houve ainda a superlotação de hospitais. Para amenizar isso, governos ampliaram leitos de UTI. Mas a medida foi apenas parcialmente eficaz: quatro em cada dez pacientes que ocuparam um desses leitos morreram —no sistema público essa média chegou a incríveis 54,8%, segundo o painel UTIs Brasileiras, da AMIB (Associação de Medicina Intensiva Brasileira).

"Existem medidas e tratamentos que reduziram a mortalidade ao longo do tempo, mas foram montadas UTIs com precarização. Formaram equipes que não eram treinadas porque, de repente, precisavam triplicar, quadruplicar o número de leitos. O intensivista requer anos de formação", diz.

7- Vacinas

Vacina da Pfizer e BioNTech é aplicada em Posto vacinação contra a Covid-19 (Coronavírus) no Allianz Parque, ZO de São Paulo - Roberto Casimiro/Fotoarena/Estadão Conteúdo - Roberto Casimiro/Fotoarena/Estadão Conteúdo
Vacina da Pfizer é aplicada em posto de vacinação da covid-19 na cidade de São Paulo
Imagem: Roberto Casimiro/Fotoarena/Estadão Conteúdo

Em tempo recorde, laboratórios ofertaram vacinas em fase avançada de testes. Enquanto países faziam contratos em larga escala, o Brasil ignorava emails da Pfizer e o presidente Jair Bolsonaro desdenhava dos estudos da CoronaVac. Resultado: quando as vacinas ficaram prontas, o país estava no fim da fila.

"O maior gargalo da vacinação no Brasil foi a compra de vacinas, a quantidade de doses disponíveis para o Brasil. Não foi feita a compra antecipada das doses necessárias. Foi a falta de planejamento do governo federal, motivada —ao que tudo indica, pelo que vemos na CPI da Covid— por negacionismo, por achar que não ia ser necessário ter vacinas, afinal a pandemia nem é tão grave assim. Além disso, vimos que havia também a corrupção", afirma Natália Pasternak, bióloga e fundadora do Instituto Questão de Ciência.

Quando a vacinação começou, entrou também em cena o negacionismo dos benefícios da vacinação. "A gente teve erros de comunicação que foram bastante preocupantes no processo de vacinação. Essas falhas deixaram as pessoas confusas e desnorteadas", finaliza.