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São Paulo estuda liberar uso de máscaras, mas se apoia em dados defasados

3.nov.2021 - João Doria, (PSDB) governador de São Paulo, participa de coletiva de imprensa para falar sobre a pandemia - Roberto Casimiro/Estadão Conteúdo
3.nov.2021 - João Doria, (PSDB) governador de São Paulo, participa de coletiva de imprensa para falar sobre a pandemia Imagem: Roberto Casimiro/Estadão Conteúdo

Leonardo Martins

Do UOL, em São Paulo

15/11/2021 04h00

Para liberar o uso de máscaras de proteção em ambientes abertos no mês de dezembro, o governo de São Paulo traça um cenário ideal dos dados da pandemia para que a decisão seja tomada de forma segura. O monitoramento, no entanto, está comprometido.

Há dois meses não é possível saber ao certo quantas pessoas registram testes positivos para a covid-19 no estado, conforme apontam levantamentos do Infotracker, instituto de análise de dados da USP e da Unesp, e de uma rede de pesquisa do Facebook, apoiada pelo Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde).

O foco do problema é uma instabilidade na plataforma e-SUS Notifica, do Ministério da Saúde. Outros estados também lidam com a subnotificação no número de casos.

Em São Paulo, o Centro de Contingência entende que, para abrir mão das máscaras em espaço aberto, é necessário que o estado registre:

  • 75% da população vacinada em duas doses;
  • Média móvel de casos menor que 1.100 por dia;
  • Média móvel de internações menor que 300 por dia;
  • Média móvel de óbitos menor que 50 por dia.

A média móvel é o indicador que corrige as flutuações nos dados das secretarias de saúde que ocorrem aos fins de semana e feriados. A média dos últimos sete dias é comparada com o mesmo índice de 14 dias atrás.

A questão, em tese, é como alcançar essa meta, estabelecer flexibilizações e monitorar o estágio atual da pandemia se os dados não refletem a realidade?

Em nota, o governo de São Paulo não comentou diretamente a instabilidade dos dados, mas disse que a redução das estatísticas "é inegável" e verificada pelo monitoramento das internações em tempo real no estado.

Número imprecisos

É o Ministério da Saúde que contabiliza os casos leves e novos diagnósticos de covid por meio da plataforma e-SUS Notifica que, por problemas técnicos, dificulta uma contagem de dados precisa pela secretaria estadual de Saúde.

Isso faz com que os dados sobre casos do governo estadual estejam imprecisos desde setembro, e apontem para uma diferença grande dos números de um dia para o outro.

Dados coletados pelo Infotracker, instituto de análise de dados da USP e da Unesp, e pelo Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde) apontam para um cenário de aumento do número de casos e indicam como os dados compilados hoje pelo Ministério da Saúde e governo de São Paulo estão defasados.

O Infotracker realiza um levantamento paralelo coletando informações individualmente das 92 cidades que disponibilizam boletins epidemiológicos no estado, que tem 645 municípios.

Desde o dia 18 de outubro, o levantamento não conta com os dados da cidade de São Paulo, a mais populosa do estado —e do país. A prefeitura anunciou uma atualização no sistema de coleta de dados e parou de disponibilizar o número de novos casos diários de covid nos boletins epidemiológicos municipais, que são utilizados pelo instituto para o levantamento.

Diante disso, a própria média móvel calculada pelo instituto, em comparação com a média móvel do governo estadual, aponta que, na realidade, o número de casos em São Paulo é maior do que o divulgado.

Comparação de média móvel de casos de covid - Arte/ UOL - Arte/ UOL
Imagem: Arte/ UOL

A comparação pelos dados brutos mensais desenha melhor essa defasagem. Em setembro, o estado de São Paulo diz ter registrado 103.448 casos de covid, um número 61% menor do que o coletado pelo Infotracker de apenas 92 cidades, que disseram ter registrado 169.833 casos.

Cenário semelhante se viu no mês de outubro: o estado apontou 39.945 casos enquanto o instituto coletou 67.776 — diferença de 59%. Até o dia 10 de novembro, mais um hiato entre os dois levantamentos: o estado de São Paulo, oficialmente, contabilizou 9.668 e o Infotracker, 13.733 casos.

Comparação de número de casos diários de covid - Arte/ UOL - Arte/ UOL
Imagem: Arte/ UOL

"Os dados de 92 cidades juntas têm representado até 80% a mais do que todos os casos reportados dos 645 municípios na base de dados estadual. Essa tendência foi observada a partir de setembro, e vem se mantendo até os dias de hoje, indicando que o problema de subnotificação e esvaziamento dos casos da [variante] Delta ainda persiste", explica o matemático do Infotracker Wallace Casaca.

Outro índice de monitoramento dos casos diários de covid-19 extraoficial também estima que a meta de número de casos desejada pelo governo João Doria (PSDB) para liberar as máscaras está longe de ser alcançada.

As estimativas são levantadas por meio de questionários de sintomas respondidos por usuários do Facebook e organizados pela Pesquisa de Sintomas Mundiais COVID-19, uma parceria entre a rede social, a Universidade de Maryland e a Universidade de Carnegie Mellon, que conta com apoio do Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde) e possui dados correlatos com os registros oficiais do ministério da Saúde desde o começo do levantamento.

Segundo a pesquisa, nos últimos sete dias, houve média diária de 862 casos no estado paulista e a pesquisa de sintomas mostrou que a proporção de respondentes com sintomas de covid-19 aumentou em 14,9% em comparação com duas semanas passadas.

"Baseando-se nesses valores, antecipa-se que os casos em São Paulo estão em crescimento", diz a plataforma.

O ex-membro do Centro de Contingência e infectologista Marcos Boulos critica a falta de dados e não apoia a liberação das máscaras neste momento.

"Não podemos bobear porque os casos indicam estar aumentando. Nós só podemos respirar de forma aliviada quando tiver mais de 80% da população vacinada com duas doses e o número de infecções diminuindo", afirmou. "Entendo que o governo queira que a parte econômica funcione, mas não dá para se esconder dos dados", concluiu.

Atualmente, São Paulo registra 71,7% da sua população completamente vacinada, conforme apontam os dados do consórcio de veículos de imprensa, do qual o UOL participa.

Óbitos apontam sinais de subnotificação

O número de óbitos por covid-19 computados pelo governo estadual em novembro também apresenta sinais de subnotificação, por apresentar números mais baixos do que os calculados pelo Infotracker.

O cenário começou no dia 7, um domingo, quando o estado registrou 11 mortes por covid enquanto o instituto registrou duas. No dia seguinte, foi o primeiro dia em que não houve registro de mortes no sistema do governo paulista, enquanto o instituto contou 68 mortes.

No dia 9, mesmo sendo uma terça-feira, quando os dados costumam estar corrigidos pelo atraso dos números do final de semana, o número registrado pelo governo (2 óbitos) foi muito abaixo do registrado pelo Infotracker (77 óbitos).

Essas informações de óbitos são coletadas pelo governo estadual no sistema Sivep-Gripe, também do Ministério da Saúde, que reúne as informações de todos os municípios brasileiros. O governo já relatou problemas com o sistema Sivep-Gripe anteriormente.

A suposta ausência de mortes, comemorada pelo governador em suas redes sociais, logo virou novo imbróglio com a prefeitura paulistana, que negou ter havido algum dia em que o índice de mortes chegou a zero na cidade.

A subnotificação no número de mortes por covid também ficou evidente na última sexta-feira (12), quando o estado de São Paulo registrou 414 óbitos no dia, um salto em relação aos dias anteriores. Segundo o governo, os dados, disponibilizados pelo ministério, estavam acumulados.

O que dizem Estado, Prefeitura e Ministério da Saúde

Sem responder sobre a instabilidade no sistema do Ministério da Saúde, a secretaria de Saúde de São Paulo disse, em nota, que acompanha os indicadores pelo número de internações em tempo real.

"A redução das estatísticas é inegável e fruto do êxito da campanha de vacinação, que hoje registra 100% da população adulta vacinada com pelo menos uma dose e 91% deste público com esquema vacinal completo", afirma a pasta.

Sobre o número de óbitos, o estado diz que "os municípios são responsáveis pelo registro de óbitos no sistema federal Sivep-Gripe e as equipes técnicas da Secretaria apenas fazem a extração dos dados".

A secretaria municipal de Saúde, em nota, alegou "mudanças na estrutura do banco de dados do sistema e-SUS Notifica" para justificar a falta de divulgação de casos diários nos boletins epidemiológicos.

"Para a leitura adequada das informações dos resultados dos testes laboratoriais, foram necessárias modificações no processo de extração do banco de dados e no script de processamento dos dados epidemiológicos", afirmou, em nota, a secretaria.

A pasta finaliza dizendo que os dados do Sivep-Gripe, que contabiliza casos hospitalizados e óbitos, serão atualizados diariamente. "Assim que o processo de aprimoramento do script for finalizado, os dados do e-SUS Notifica seguirão atualizados diariamente", diz o texto.

Procurado, o Ministério da Saúde não se manifestou sobre os problemas nos sistemas.