A mulher que foi sequestrada com bebê de colo, virou escrava sexual e hoje ajuda vítimas de abuso
As lembranças dos três meses em que foi forçada a se prostituir ainda fazem Virginia Isaias, de 52 anos, chorar. A voz some e ela interrompe a entrevista várias vezes, à medida que revela os abusos que sofreu e a violência que presenciou contra outras mulheres.
Compartilhar o sofrimento foi a forma que a mexicana encontrou não só para enfrentar o trauma, mas para ajudar outras vítimas de abuso sexual.
"Às vezes, as mulheres vítimas de abuso conseguem escapar dos agressores. A vida delas é salva, mas é como se estivessem mortas. Elas não funcionam mais. Eu passei nove anos assim. Sem dizer nada, recordando e recordando. Eu estava livre, mas continuava escrava dos meus pensamentos", conta ela à BBC Brasil por telefone.
Os abusos na vida de Virginia começaram cedo. A primeira vez foi aos seis anos, por um vizinho.
"Como eu era muito pequena, não entendi bem o que aconteceu. E não sabia como isso me afetaria", diz.
Ela se casou aos 15 anos com outro jovem, de 16 anos. Com ele, se mudou para os Estados Unidos e teve três filhos. Mas o marido era violento e a agredia com frequência.
"Foram 12 anos de violência doméstica. Busquei ajuda em igrejas, grupos de apoio. Acabei decidindo voltar para o México", conta.
Virginia deu a volta por cima, abriu uma loja de roupas e importava vestidos e blusas dos Estados Unidos. Os negócios iam bem. Mas numa tarde qualquer, três homens roubaram o estabelecimento dela e a violentaram. Ela engravidou e decidiu ter a filha. Mas o pior ainda estava por vir.
Seis meses após o bebê nascer, Virginia andava pelas ruas de Guadalajara com a filha no colo, quando foi abordada por um grupo de homens e forçada a entrar num carro. Era o início do pior pesadelo que poderia imaginar.
"Me agrediram e levaram a mim e minha filha à Cidade do México. Nos trocaram por dinheiro e nos levaram a Guajaca e depois para Chiapas."
Assim que chegou a uma casa com aspecto de abandonada, foi separada da filha.
Aos poucos, ela foi percebendo o que se passava. Estava sob o domínio de uma quadrilha de tráfico humano e de drogas. Outras 18 mulheres também estavam à mercê da gangue. Várias, assim como Virginia, tinham bebês de colo.
"Não podíamos ter contato com nossos próprios filhos. Trocavam os bebês, então eu amamentava o filho de outras mulheres sequestradas", lembra.
Escrava sexual
A rotina a partir dali foi de exploração em todas as formas possíveis. De quinta a domingo, era "escrava sexual", forçada a fazer sexo com pelo menos nove homens por dia. Em troca, recebia a promessa de que a filha seria alimentada.
"Foram três meses em que fui torturada e vendida à prostituição de quinta a domingo. Também nos colocavam para empacotar drogas, para empacotar partes de corpos de pessoas que eles sequestravam e matavam. Em caixinhas, eles colocavam dedo, orelha, e enviavam para as famílias para pedir resgate."
Desesperada, ela tentou fugir três vezes. Na terceira, chegou a conseguir sair do cativeiro e pediu ajuda aos primeiros policiais que encontrou, para tentar resgatar a filha. Em vez de apoio, foi entregue pelos soldados ao sócio da quadrilha.
"O sócio para quem eu fui entregue me agrediu e dizia: 'Por que você quis fugir? Eu te amo. Por que fugiu?'. Como ele não parava de me bater, respondi que também o amava. E fiz um pedido. Disse que faria o que ele quisesse, mas que precisava ter minha filha de volta", relata.
O homem respondeu que o bebê já havia sido vendido.
"As crianças eram vendidas para diferentes partes do mundo. Essa quadrilha tinha conexão com o mercado negro de venda de crianças para adoção", relata.
Virginia insistiu. Implorou para que o sócio da quadrilha comprasse o bebê de volta.
Ele atendeu aos apelos dela, e Virginia pôde, enfim, rever a menina. A criança renovou as esperanças dela, que passou a pensar em novas formas de escapar da rotina de abusos e agressões.
Uma de suas lembranças mais dolorosas é a de outras mulheres sendo espancadas.
"Eu aprendi a controlar a dor, a não gritar, a ficar calada. Eu vi que outras mulheres, quando reclamavam e gritavam, eles espancavam e, às vezes, matavam", diz Virginia, interrompendo a entrevista para recobrar a voz.
No fim do terceiro mês de cativeiro, surgiu a oportunidade de fugir. Uma operação policial foi deflagrada e as sedes da quadrilha começaram a ser desmanteladas. Os líderes do bando souberam da operação e fugiram da casa onde Virginia era mantida presa.
Só alguns vigias ficaram para trás, para impedir a fuga das mulheres sequestradas.
"Me deixaram lá com alguns homens de vigia. Um deles disse que a mãe estava doente e que precisava de uma cirurgia. Eu disse a ele que podia dar o dinheiro, se me libertasse. Não foi fácil convencê-los."
Com papelão, ela fez um "sapato" improvisado e deixou o cativeiro, cruzando, com a filha no colo, a mata que rodeava o cativeiro. Após uma hora de caminhada, encontrou a estrada e o carro que os vigias que a ajudaram haviam encomendado para a fuga.
A primeira providência de Virginia foi ligar para a irmã e tentar levantar o dinheiro que havia prometido.
"Ela pensava que eu estava morta. Mas conseguiu o dinheiro e eu paguei o que devia a eles."
Superação
Os primeiros anos após o sequestro foram difíceis. Ela buscou os três filhos que teve com o primeiro marido e foi com as quatro crianças para os Estados Unidos. Lá, se virou como pôde para sustentar a família sozinha.
"Comecei a trabalhar limpando casas, fazendo massagem, acupuntura, trabalhei em salões de beleza, vendia produtos de nutrição... Mas ainda tinha muito sofrimento. Tinha muito medo, chorava muito", relembra.
Virginia conta que começou a encontrar um "rumo" quando passou a trabalhar num projeto de assistência de saúde mental para a comunidade latina, na Califórnia. Ajudava compatriotas e pessoas de outros países latino-americanos a identificar problemas mentais e psicológicos e a encontrar ajuda.
"Eu tinha uma pasta com nomes de organizações que ajudam em cada tipo de situação. Se a necessidade era comida, médico, terapia, ajuda contra violência doméstica, abrigos... As pessoas vinham a mim e eu ajudava, encaminhando", conta.
Foi da vontade de ajudar mais, principalmente mulheres vítimas de abuso, que nasceu a Fundação de Sobreviventes de Tráfico Humano, com sede em Santa Ana, na Califórnia.
"Percebi que poderia dar o que precisavam de graça, mas isso não era suficiente. Elas precisam de ferramentas, precisam aprender a pescar. Depois de tudo o que passei, ainda choro, ainda sofro, mas hoje sei que tenho uma visão, tenho um propósito de vida, posso dar a mão às pessoas, mas também ferramentas para ajudá-las a reconstruir suas vidas", diz.
A fundação gerida por Virginia oferece assistência a vítimas de tráfico, com apoio psicológico, oferecimento de abrigo e até cursos de capacitação. É também um espaço para que as mulheres se reúnam e compartilhem suas histórias.
"Temos uma oficina, para que as pessoas cheguem e recebam ajuda. Muita gente se cala. Se é homem, sente vergonha. Se é criança, tem medo. Se é mulher, acha que não vai ser aceita. Quando eu conto a minha história, as pessoas se identificam e se sentem mais à vontade para revelar os próprios problemas e abusos que sofreram. Reconhecer o problema é um passo em direção à recuperação", defende.
Já se passaram 20 anos desde que Virginia foi sequestrada e submetida à violência sexual. A filha, que ficou no cativeiro dos seis aos nove meses, hoje está na universidade, na Califórnia. Estuda políticas ambientais e sonha em ajudar na proteção dos animais.
Negócio ilegal, lucrativo e cruel
Assim como Virginia, milhões de mulheres em todo o mundo são vítimas, todo ano, de tráfico com finalidade sexual.
Segundo relatório de setembro de 2017 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o tráfico humano gera lucro de US$ 150 bilhões (R$ 485 bilhões) por ano aos traficantes, sendo que US$ 99 bilhões são provenientes especificamente de exploração sexual.
Na América do Sul, 57% do tráfico humano é voltado à exploração sexual, 29% a trabalhos forçados e 14% a outros propósitos (recrutamento para trabalhar com tráfico ou luta armada, por exemplo).
Na América do Norte, o percentual de tráfico humano voltado à exploração sexual é de 55%. Enquanto a maioria dos traficantes é homem (seis em cada dez), a maior parte das vítimas é mulher ou criança - 71%.
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