Morte de brasileiro expõe rotina arriscada de motoboys em Londres
A morte do capoeirista e motoboy Iderval Silva, de 46 anos, em maio de 2019 assustou os colegas de profissão e escancarou a difícil vida dos motoboys na capital britânica.
Silva morreu três dias depois de ser atacado por um grupo de jovens que tentavam levar a moto dele no sul de Londres. Quatro pessoas foram indiciadas pelo crime, três deles adolescentes.
O roubo de motos não é a única ameaça que os entregadores em duas rodas dizem ter que enfrentar nas ruas de Londres, onde, segundo relatos, vivem uma rotina de medo e violência.
Atraídos por um mercado de entregas aquecido e pelo câmbio favorável, brasileiros trabalham em grande número como motoboys em Londres.
Eles reclamam, principalmente, do furto e roubo de motos e de comida que transportam, que se transformaram em ameaças constantes e crescentes na rotina dos entregadores.
Os motoboys dizem que o mercado de entregas em Londres é dominado por brasileiros que levam vantagem por serem mais ágeis e ousados no trânsito. Não existem, contudo, números oficiais sobre a quantidade de entregadores que nasceram no Brasil e trabalham no Reino Unido.
Faltam estatísticas oficiais, mas sobram histórias de tensão, ameaça e violência. Segundo motoboys ouvidos pela BBC News Brasil, não é exagero comparar o medo que sentem em Londres com a violência que também deixa muita gente assustada no Brasil.
O paulista Welington Silva, de 42 anos, teve a moto furtada na noite de Natal e, por duas vezes, foi assaltado por grupos de adolescentes que levaram as refeições que ele transportava. Ladrões também levaram a moto do entregador paranaense César Farias, de 29, que precisou pagar resgate para recuperar seu principal instrumento de trabalho.
Já o mineiro Kleverson Saad, de 41 anos, já bateu para não ter a moto roubada, mas apanhou de um grupo que queria pegar a comida que ele entregava. Depois de evitar um roubo batendo nos ladrões, foi orientado pela polícia a mudar de casa.
"Me disseram que um dos integrantes do grupo, que acabou morrendo na perseguição policial, tinha um tio que havia sido morto e o pai estava na prisão. Era de uma família complicada. A polícia disse que poderiam voltar (para se vingar)", conta.
O paranaense Fernando Pansera, de 41, nunca foi roubado, mas teve a placa da moto clonada e ganhou multas de infrações que ele não cometeu.
O baiano André Luiz Maciel, por sua vez, viu o amigo ser espancado na frente dele, durante uma tentativa de roubo da moto em plena luz do dia. O amigo de André era o também brasileiro e capoeirista Iderval Silva, que morreu dias depois do ataque, em decorrência dos ferimentos.
"Perdi meu melhor amigo", lamenta André. A morte de Iderval assustou os colegas de profissão e escancarou a difícil vida dos motoboys na capital inglesa.
Cenas explícitas
O número de roubos e furtos de motocicletas praticamente duplicou entre 2013 e 2016, último ano em que a polícia metropolitana de Londres divulgou estatísticas específicas de roubo de motos.
Foram registrados 7.385 casos em 2013 e 14.043 em 2016. O índice de motos recuperadas também aumentou ao longo desses anos e, na média, mais da metade dos veículos são encontrados.
"Pegam as motos principalmente para zoar e fazer outros roubos. Mas também levam para desmanche e colocam fogo", conta Roseane Gomes, que já passou aperto quando pilotava moto nas ruas da capital inglesa, onde vive há 16 anos. Ela conta que já foi perseguida por ladrões e, uma vez, largou a moto no meio da rua e saiu correndo.
Vídeos gravados pelos próprios brasileiros, que equipam as motos com câmera na tentativa de intimidar ladrões, mostram cenas de furtos e roubos.
Jovens com maçaricos portáteis derretem correntes e cadeados, tentam derrubar motoqueiros em pleno movimento ou são abordados no momento em que vão pegar a moto.
Pesadelo de Natal
Welington Silva, de 42 anos, trocou Portugal por Londres para tentar fazer dinheiro. Na capital britânica, fez faxina para juntar dinheiro, comprar uma moto e ganhar a vida fazendo entrega. Viu o investimento de 3 mil libras, o equivalente a R$ 14 mil no câmbio atual, desaparecer na noite de Natal. "Na noite de 24 para 25 de dezembro levaram minha moto. Parecia um pesadelo", diz Silva. "Já me levaram a comida que estava entregando duas vezes", conta, dizendo que preferiu perder a entrega a apanhar. Silva sonha em mudar de vida. Diz estar juntando dinheiro para fazer faculdade. "Abandonei o curso superior quando estava no Brasil, mas ainda sonho em ter um diploma. Quero largar essa vida de entregador", diz, contando que quer estudar Inglês.
Também há imagens de ladrões em motos roubadas, munidos de martelos, assaltando lojas. Foi assim que um grupo atacou a loja da Apple na Regent Street, no coração de Londres, em novembro de 2017. A cena tem se repetido, apesar de a política ter intensificado o combate às ações dos ladrões que usam moto para cometer outros crimes.
Em maio de 2019 um grupo roubou uma joalheria e foi perseguido por testemunhas, uma delas filmou a fuga. Cinco pessoas acabaram presas.
Cenas de violência aconteceram também em outras cidades do Reino Unido. Recentemente o jornal Daily Mail mostrou imagens feitas por um entregador em Birmingham que flagrou o passageiro num carro com uma faca, exigindo que ele parasse.
Em 2018, o governo britânico mudou as regras para facilitar o trabalho da polícia e permitir que eles persigam motoqueiros.
No Reino Unido, qualquer motorista - incluindo policiais até então - que não dirigir de maneira "competente e cuidadosa" pode ser processado, acusado de direção perigosa.
A policia também criou uma unidade específica para investigar e tentar coibir esse tipo de crime.
Medo e morte
Ainda assim, o sonho de fazer dinheiro sob duas rodas no Reino Unido se transformou em pesadelo para muita gente, que deixou o Brasil com a esperança de fugir da violência e acabou encontrando a insegurança.
"A gente sai em busca de oportunidades, pensa que um país de primeiro mundo vai ter mais segurança, mas não é bem assim", lamenta Fernando Pansera, que mora no mesmo bairro onde Iderval Silva foi atacado por ladrões.
'Resgate de R$ 1 mil por moto roubada'
César Augusto Farias, de 29 anos, saiu de Marialva, interior do Paraná, está há três anos em Londres. Desde que chegou, trabalha com entregas. Há cinco meses, chegou em casa e não achou a moto dele. Acionou os amigos para ajudá-lo a procuar a moto que vale 1,5 mil libras (cerca de R$ 7,5 mil). Uns amigos descobriram que ela estava com um grupo de um outro bairro. "Me disseram que era uma moto boa para empinar e, por isso, a levaram. Prometeram devolver se eu pagasse um resgate. Paguei 200 libras (R$ 1 mil)", conta como conseguiu reaver a moto.
A morte do capoeirista, em julho, fez os motoqueiros brasileiros que trabalham em Londres se unirem e organizarem dois protestos por mais segurança, mais apoio dos aplicativos de entrega e menos despesas.
Silva, que além de capoeirista era motoboy, foi atacado por um grupo ladrões, entre eles adolescentes, que tentavam levar a moto dele em plena luz do dia.
Dezenas de motos tomaram as ruas de Londres, num 'buzinaço' em homenagem ao capoeirista. Queriam também chamar a atenção para os perigos da profissão.
Um dos organizadores do movimento é Kleverson Saad, que trocou o trabalho com prótese dentária pelas entregas de moto na capital inglesa. Mas ele próprio diz que está difícil manter os brasileiros unidos e levar adiante o pleito da categoria.
"Não estamos conseguindo fazer muita coisa", lamenta.
Além da falta de policiamento, os motoboys brasileiros reclamam do valor dos seguros que, segundo eles, não cobrem furto nem roubo.
Moto trancada, placa clonada
Fernando Pansera, de 41 anos, trabalhava como gerente de uma ótica em Maringá, no Paraná, quando decidiu largar o emprego. Chegou com a mulher em Londres em maio de 2016. Buscava uma vida mais tranquila e segura no exterior. Mas, desde que começou a trabalhar como entregador, diz viver com medo. Equipou a moto dele com alarme, rastreador e a prende na porta de casa com três trancas diferentes. "Já vi que mexeram nela, mas nunca me roubaram", conta. Pansera, contudo, diz ter passado por outros perrengues. Já sofreu um acidente durante uma entrega, quebrou duas costelas e ficou dois meses sem poder trabalhar. E, na semana passada, descobriu que clonaram a placa da moto dele e recebeu várias multas que ele não cometeu. "Toda semana tem uma história diferente. Minha mulher fica morrendo de medo quando saio para trabalhar".
Despesas e faturamento
"O seguro não cobre roubo por causa da quantidade de ocorrências, mas custa caro e é obrigatório para quem faz entrega. Sem seguro não te contratam", lamenta Welington Silva, dizendo que essa é apenas uma das muitas despesas. "Mas as pessoas de um modo geral pensam apenas nos ganhos, se esquecem dos gastos", completa Kleverson.
Por mês, motoboys dizem pagar em média de 130 a 170 libras de seguro obrigatório, gastar até 300 libras de combustível e cerca de 70 libras de manutenção, sem contar com as despesas com manutenção. A libra está cotada em torno de R$ 5 e, portanto, gastos mensais só com a moto giram em torno de R$ 2,7 mil.
Os motociclistas lembram que há equipamentos fundamentais, além do capacete. Uma jaqueta que suporte o frio e luvas, por exemplo, são acessórios que podem custar bem caro. "Uma boa jaqueta custa até 900 libras", conta Welington.
A renda, por sua vez, varia com a quantidade de horas trabalhadas e o número de entregas depende muito das condições meteorológicas, em especial para quem vive de entregar comida.
Dias chuvosos e dias muito frios têm mais demanda. Por entrega, ganha-se cerca de 4 libras (R$ 20 no câmbio atual).
Jornadas médias de 12 horas são comuns para quem trabalha na capital inglesa. Há motoboys que relatam no YouTube faturar até 170 libras (R$ 850) em dias excepcionalmente bons. Mas, na média, os motoboys dizem que faturam esse montante em semanas produtivas com uma jornada de trabalho não tão puxada.
Roleta perigosa
Pesa ainda no orçamento a escolha da área para se trabalhar. Em bairros de classe média alta, como o Chelsea, há mais gorjeta, mas mais motoristas à espera de um chamado.
Há ainda áreas que motoristas dizem evitar. Prédios onde há muitas moradias sociais e áreas onde a atuação de gangues é mais ativa são, com frequência, evitados pelos entregadores.
"Tem lugar que eu evito ir", conta Fernando. Kleverson fala que há gangues com crianças de 11 anos que são, muitas vezes, até mais violentas que os mais velhos.
'Me senti culpado por não reagir'
André Luiz Maciel, de 43 anos, é capoeirista mas ganha a vida como motoboy. Chegou ao Reino Unido há pouco tempo, disposto a dar continuidade ao trabalho social que desenvolve ensinando capoeira. Ele próprio diz ter sido "salvo" pela capoeira quando era criança na Bahia. O plano deu errado e André tem pago as contas com entregas. Viu Iderval ser atacado por crianças e adolescentes em frente ao restaurante onde, minutos antes, o amigo tinha pago o almoço dele. 'Me senti culpado por não ter reagido. Fiquei mal. Mas foi tudo muito rápido, fiquei paralisado e sem entender direito o que aconteceu", conta. Desde a morte do amigo ele diz que tem medo de voltar ao local do ataque. "Tenho medo de machucar alguém".
Battersea, bairro onde o brasileiro foi atacado, já está sendo considerado um ponto perigoso pelos motoqueiros.
"Não era assim. É uma pena porque eram justamente esses adolescentes que o atacaram que ele queria ajudar, ensinando capoeira", diz Fernando, lembrando que o capoeirista tentava tirar do papel um projeto social.
"O que aconteceu com o Bugrão (apelido do brasileiro morto) pode acontecer com qualquer um de nós. Trabalhamos com medo", diz César.
Para André, amigo do capoeirista, a vida de entregador em Londres se assemelha a uma perigosa roleta. "Ninguém sabe o que vai dar".
O que dizem os apps de entrega
Na capital inglesa, dois aplicativos estão entre os mais usados por entregadores de comida: Uber Eats e Deliveroo. A BBC News Brasil procurou as duas empresas para falar sobre o número de brasileiros que trabalham fazendo entrega e também sobre os relatos de assaltos e violência.
Por meio da assessoria de imprensa, a Deliveroo diz que o aplicativo é popular entre brasileiros que fazem entrega de moto e bike em Londres porque os entregadores "desfrutam da flexibilidade e do trabalho bem remunerado" que a empresa oferece. Informou, contudo, não ter dados sobre o número de brasileiros entre os 25 mil entregadores cadastrados no Reino Unido.
Ao contrário do que dizem os motoristas, a empresa afirmou que "crimes contra os entregadores são raros, mas que os leva a sério". "A segurança do entregador é prioridade absoluta para a Deliveroo", esclareceu a empresa, dizendo que atualizou o aplicativo com uma função na qual os entregadores podem informar se lhes falta segurança.
"Trabalhamos em estreita colaboração com as autoridades para compartilhar informações que ajudarão a combater o crime e o comportamento antisocial", diz a Deliveroo.
Um porta-voz da Uber Eats esclareceu que a empresa oferece seguro gratuito para entregadores independentes em toda a Europa, que cobre doença, lesões e pagamentos de maternidade e paternidade. A empresa, contudo, não informou quantos são os brasileiros nem que tipo de segurança oferece aos seus entregadores.
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