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Morte de Suleimani: o que diz lei internacional sobre ataque dos EUA?

Governo americano argumentou que ataque contra Soleimani "tinha como objetivo impedir futuros planos de ataques iranianos" - Getty Images
Governo americano argumentou que ataque contra Soleimani 'tinha como objetivo impedir futuros planos de ataques iranianos' Imagem: Getty Images

Reality Check

BBC News

08/01/2020 06h17

Entre os muitos debates envolvendo o assassinato do general iraniano Qassim Suleimani está a dúvida de se os EUA tinham base legal para ordenar o ataque aéreo, realizado em solo iraquiano na quinta-feira passada.

"O ataque tinha como objetivo impedir futuros planos de ataques iranianos", argumentou o governo americano ao defender sua ação.

Quais são, então, as questões-chave envolvendo a legalidade (ou não) desse ato, segundo a lei internacional?

O que diz a lei

A lei relevante ao tema no Estatuto da ONU permite que um Estado aja em autodefesa "se ocorrer um ataque armado".

Mas essa definição é, na prática, sujeita à interpretação de governos, dizem especialistas.

"No caso de Suleimani, os EUA estão alegando ter agido em autodefesa para impedir ataques iminentes, uma categoria de ação que, se for verdadeira, é geralmente vista como admissível sob o Estatuto da ONU", afirma Dapo Akande, professor de Direito Internacional da Universidade de Oxford e codiretor do Instituto de Ética, Direito e Conflito Armado (ELAC) da instituição.

No entanto, para Agnes Callamard, relatora especial da ONU para execuções extrajudiciais, é improvável que a ação dos EUA se enquadre nessa categoria.

"Os limites para a chamada autodefesa antecipada são muito estreitos: é necessário que (a necessidade de autodefesa) seja 'imediata, esmagadora e não deixe outra escolha de meios e não deixe tempo para deliberações'", ela tuitou. "É improvável que esses requisitos sejam cumpridos em casos assim."

Um relatório de 2010 da ONU sobre "mortes alvejadas" afirmava que havia um substancial corpo de acadêmicos que defendiam o mesmo raciocínio citado por Callamard.

O comunicado inicial do Departamento de Defesa dos EUA sobre a morte de Suleimani omitia a palavra "iminente" e afirmava que o ataque aéreo visava impedir ataques futuros iranianos e que Suleimani estaria "ativamente desenvolvendo planos de alvejar diplomatas e funcionários no Iraque e pela região".

Em comunicados posteriores, autoridades americanas, incluindo o presidente Donald Trump, afirmaram que Suleimani planejava "ataques iminentes".

Elizabeth Warren, pré-candidata democrata à Presidência dos EUA, rebateu afirmando que "o governo não consegue acertar sua narrativa".

Há evidências de que o Irã planejava um ataque iminente?

A legalidade do ataque sob a lei internacional pode depender de os EUA oferecerem evidências desses futuros ataques iminentes, afirma Akande.

O governo americano não tornou esses detalhes públicos, mas disse que inteligência a respeito foi compartilhada com membros do Congresso ligados à política externa do país.

Questionado por um jornalista ontem a respeito dessas ameaças iminentes vindas do Irã, o secretário de Estado Mike Pompeo citou os episódios que anteciparam o ataque de quinta-feira — o ataque à embaixada americana do Iraque, que os EUA atribuem ao Irã; ataques de milícias xiitas a bases iraquianas que abrigam tropas americanas —, mas não mencionou provas a respeito de ataques futuros.

Há outras justificativas que foram citadas no passado, segundo Ralph Wilde, especialista em Direito Público Internacional do University College London.

"Desde o 11 de Setembro (de 2001), os EUA têm adotado a visão de que a autodefesa pode ser justificada para prevenir ataques de longo prazo — quando o ataque está sendo planejado, mas não é iminente. O governo Obama usou esse argumento para justificar ataques com drones", afirma.

E quanto ao consentimento iraquiano?

Outra questão em debate é se os EUA tinham de ter pedido consentimento do Iraque para realizar um ataque dentro de seu território.

O governo iraquiano afirmou que o episódio foi "uma flagrante violação da soberania" do país, e o Parlamento aprovou uma resolução (não vinculante) pedindo que as tropas americanas deixem o Iraque — algo que o governo americano rejeita fazer até o momento.

Há cerca de 5 mil militares no país, sobretudo em tarefas de apoio às tropas iraquianas e no combate ao grupo autodenominado Estado Islâmico.

Os EUA podem argumentar que sua presença ali já deixa implícito algum tipo de consentimento à sua ação no país, dando-lhes o direito de proteger seus interesses e cidadãos dentro do Iraque.

Mas Akande argumenta que, na prática, os termos do acordo entre o Iraque e as tropas americanas não se estendem à possibilidade de se executar um ataque como o que matou Suleimani.

É permitido alvejar pontos de relevância cultural?

No domingo, Trump ameaçou Teerã com ataques a 52 pontos de interesse iranianos, "alguns de alto nível e muito importantes ao Irã e à cultura iraniana".

O chanceler iraniano, Javad Zarif, afirmou que um eventual ataque a um patrimônio cultural iraniano constituiria um crime de guerra.

"(A ameaça de Trump) mostra um cruel desprezo pelo estado de direito internacional", declarou Andrea Prasow, da organização Human Rights Watch.

O governo dos EUA tem insistido que seus ataques ocorreriam dentro da lei.

Mas um eventual ataque contra um patrimônio cultural violaria diversos tratados internacionais.

A Convenção de Haia de 1954 pela Proteção de Propriedade Cultural protege sítios culturais, em reação à destruição de patrimônio cultural ocorrido na Segunda Guerra Mundial, e tem os EUA como signatários.

Em 2017, a ONU aprovou uma resolução em reação a ataques do Estado Islâmico (EI), condenando "a destruição ilegal de patrimônio cultural, incluindo de locais e artefatos religiosos".

Os EUA estiveram entre os mais duros críticos do EI quando o grupo extremista alvejou a cidade histórica síria de Palmira, em 2015, e quando o grupo Talebã demoliu os Budas de Bamiyan, no Afeganistão, em 2001.

Em 2016, pela primeira vez, o Tribunal Penal Internacional fez uma condenação com base em crimes contra patrimônio histórico. Ahmad Al Faqi Al Mahdi, ligado à Al-Qaeda, foi considerado culpado pelo "crime de guerra de intencionalmente direcionar ataques contra edificações religiosas e históricas" em Timbuktu, no Mali, em 2012. Al Mahdi foi condenado a nove anos de prisão.

Os EUA não são parte do Tribunal Penal Internacional, mas são signatários de outros acordos de proteção a propriedade cultural — e qualquer ataque do tipo representaria uma significativa reversão.