Passaporte confiscado e forçados a trabalhar: o tráfico humano em Mianmar
Dois brasileiros, Luckas Viana dos Santos e Phelipe de Moura Ferreira, foram traficados desde outubro para Mianmar, e suas famílias pedem socorro ao governo federal para trazê-los de volta em segurança.
Por que Mianmar é um país de risco tão alto para tráfico humano?
País vive momento de instabilidade política. As instituições de Mianmar têm graves problemas desde que um golpe em 2021 reinstaurou uma ditadura militar. O relatório do Departamento de Estado dos EUA de 2024 sobre tráfico humano destaca que o país, também conhecido como Birmânia, "não corresponde aos padrões mínimos de eliminação de tráfico e não faz esforços significativos" para resolver o problema, com o próprio governo recrutando crianças como soldados e usando tanto maiores quanto menores de idade traficados para trabalho forçado.
Cumplicidade do governo com o tráfico. Governo não reportou dados de ação policial contra oficiais do próprio governo por cumplicidade com o tráfico, apesar de confirmar casos de corrupção em relação a este tipo de crime, segundo o relatório americano. Policiais birmaneses prenderam dez cidadãos chineses por golpes online relacionados ao tráfico em 2023, no entanto, não houve atuação para combater expansão desta rede.
Número de vítimas de tráfico humano através da rede de golpes digitais poderia chegar a 120 mil no último ano, afirma governo americano. Migrantes para a região asiática seriam alguns dos grupos-alvo dos criminosos, e a fronteira com a Tailândia seria um de seus principais pontos de entrada, com o governo de Mianmar mantendo representação local justamente por questões de trabalho. Pelo menos um dos brasileiros traficados estava na Tailândia antes do crime.
Polícia de Mianmar reportou ter investigado 27 casos de tráfico em 2023, sendo sete deles de tráfico sexual, seis de tráfico humano para trabalho forçado e 14 de forças não especificadas — que incluem casamento forçado. O governo ainda iniciou processos legais contra 92 acusados de tráfico, mas não detalhou mais informações sobre os casos. 111 criminosos foram condenados por tráfico em Mianmar em 2023; no ano anterior, o número era de 170. Todos os dados são muito inferiores às estimativas de vítimas.
Corrupção enraizada no governo leva à exploração e tortura dos traficados
Traficados seriam obrigados a atuar em posições de combate e vigilância, cozinha, cultivo em fazendas, construção, limpeza, manutenção de acampamentos e até como escudos humanos. Há outros que são especificamente obrigados a trabalhar em centros de golpes online comandados por cidadãos da China, dentro de cassinos ou outros prédios na fronteira com a Tailândia, região sobre a qual o governo tem pouco controle, segundo o Departamento de Estado dos EUA.
Traficantes usam redes sociais para oferecer promessas de trabalho no setor de tecnologia para "vítimas com formação educacional de moderada a alta". Na chegada, traficantes confiscam seus passaportes e os forçam a cometer golpes online sob ameaça de débito, ameaças físicas, violência e tortura — que inclui choques com taser, hastes elétricas e eletrocussão, além de prisões e violência sexual.
Vítimas "bem-sucedidas" ainda costumam ser vendidas para outros centros de golpes. Há relatos de outras que não alcançam suas "metas" e são deixadas nas ruas sem documentos para serem presas pelas autoridades birmanesas por violações de imigração, mas o destino de todos é incerto. Segundo o governo americano, há denúncias de corrupção e complacência da polícia, autoridades locais e grupos étnicos armados nos esquemas de trabalho forçado e golpes online, que chegam a agredir e violentar sexualmente as vítimas.
Indivíduos LGBTQIA+ estão em maior risco de extorsão e ação discriminatória, além coerção psicológica por parte dos policiais locais, alerta o relatório. Os EUA recomendam a cooperação das autoridades de Mianmar com as Nações Unidas para resolver a questão. Por outro lado, a Organização Internacional do Trabalho, agência das Nações Unidas, aponta em relatório de 2020 que um dos pontos centrais da crise migratória e do tráfico humano em Mianmar é justamente a corrupção dos agentes que deveriam combater este tipo de crime.
Negócio 'da China' é mesmo bilionário
Em março, cerca de mil chineses traficados foram repatriados após serem libertados de centros de golpes em Mianmar. Voos partiram de Mae Sot, cidade tailandesa próxima à fronteira com Mianmar, segundo a BBC. O Ministério de Segurança Pública de Mianmar garantiu ter entregue ao governo chinês outras 44 mil pessoas suspeitas de estarem envolvidas no esquema que gera bilhões de dólares, de acordo com a rede britânica. Entre eles estariam três chefes das quadrilhas, que teriam sido enviados a Pequim em janeiro.
Golpes que vítimas são obrigadas a aplicar estariam envolvidos com criptomoedas. De acordo com reportagem da rede alemã Deutsche Welle, que conversou com uma vítima que escapou do esquema, sua tarefa era convencer "clientes" a depositarem suas economias em falsos investimentos lucrativos, mas o dinheiro entrava em uma conta controlada pelos criminosos. Assim que se alcançava uma determinada soma, as contas eram zeradas.
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Quero receberEx-vítimas reconheceram os crachás nos uniformes de guardas do KK Park, em imagens mostradas a eles pela DW. Eles possuem as insígnias da Força de Guarda de Fronteira, um grupo de ex-rebeldes que deixou de combater a junta militar de Mianmar uma década atrás, em troca do controle total sobre seus territórios. Seus soldados policiam o KK Park, mas os chefes da operação são chineses.
Entre as contas digitais de cripto do esquema, uma foi aberta por Wang Yi Cheng, um empresário chinês residente na Tailândia. Ele recebeu dezenas de milhares de dólares em criptomoedas de carteiras usadas pelo KK Park, e integra uma rede maior de empresários chineses no exterior, que inclui um chefão da máfia chinesa, ainda de acordo com a rede alemã. O cenário político e econômico instável de Mianmar oferece aos envolvidos nos centros de golpes com traficados o terreno fértil para operações.
Wang também era vice-presidente da Thai-Asia Economic Exchange Association, uma associação sediada em Bangcoc que promove relações entre a Tailândia e a China. Essas organizações têm conexões estreitas com Wan Kuok Koi, ex-presidiário ligado ao crime organizado que agora "luta pelo Partido Comunista da China", apontou Jason Tower, especialista do Institute for Peace.
Wan Kuok Koi é o fundador da organização Hongmen, que também promove a ambiciosa Iniciativa do Cinturão e Rota. Também conhecido como a "Nova Rota da Seda", o projeto de infraestrutura de trilhões tem o objetivo de integrar a China ainda mais à economia global.
O terreno em que foi construído o KK Park fica em uma área-alvo dos investimentos da China. Relatórios do governo comemoravam projetos de construção em suas proximidades, embora mais tarde Pequim tenha se distanciado, devido a alegações de fraude em ampla escala, menciona ainda a DW.
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