Trump x Biden: Racha familiar expõe divisão entre latino-americanos em Miami
Os hondurenhos Salma Cano e Oscar Zuniga são casados há 26 anos e vivem em Miami há mais de duas décadas. Nunca, em todo esse tempo, a dupla esteve tão apreensiva com uma eleição.
"Essa eleição vai ser histórica. Nós nunca estivemos tão divididos e nunca tanta gente correu pra votar", diz Salma, em referência à comunidade latina que vive na Flórida. Dos 5,7 milhões de hispânicos do estado, mais de 2,5 milhões se registraram para votar neste ano - quase meio milhão a mais que na eleição de 2016, segundo dados do governo do estado analisados pelo Instituto Pew.
O comentário da hondurenha, no entanto, poderia se referir ao quintal da própria casa, em um bairro hispânico próximo ao centro de Miami.
Enquanto comem sanduíche de pão de coco com refrigerante no jardim, ela e o marido contam que haviam acabado de votar antecipadamente no democrata Joe Biden (apesar da eleição só acontecer em 3 de novembro, moradores da Florida podem votar desde a semana passada).
Até aí, nada de novo em comparação ao padrão latino nas últimas eleições. Em 2016, 66% dos membros da comunidade nos EUA votaram em Hillary Clinton, enquanto 71% e 67% votaram em Barack Obama em 2012 e 2008, respectivamente.
A novidade é o filho, Oscar Junior, de 21 anos, que vai votar pela segunda vez na vida. A primeira foi em Hillary.
"Agora eu voto Trump."
'Apelo macho'
Junior, que nasceu nos EUA e, diferentemente dos pais, faz questão de falar inglês, não é caso isolado.
Apesar do apoio da maioria latina aos democratas, o grupo formado por homens com menos de 45 anos é o que mais simpatiza com o republicano nessa fatia do eleitorado.
"Se ele não gostar de algo, ele vai dizer na sua cara. E muita gente não gosta que o outro seja direto. Trump não tem filtro, entende? Para mim, isso é bom. É importante ser direto. Para que dar tanta volta na vida?", pergunta Junior.
A visão bate com o que analistas americanos descrevem como o "apelo macho" de Donald Trump sobre o eleitorado masculino. Enquanto o oponente Joe Biden seria visto como simpático a causas femininas e menos firme em relação temas como economia, Trump alimentaria uma imagem de confrontador, autoconfiante e "sem papas na língua".
A reportagem pergunta quais são os principais argumentos de Junior ao escolher Trump.
"Biden quer tirar o dinheiro da polícia. Se estivermos em perigo, temos que chamar a polícia. Eu tenho muitos amigos que são policiais e estão em perigo. Quem vai nos proteger? Também querem tirar nosso direito a portar sua arma. Se não tivermos polícia e armas, o que vai acontecer, quem vai cuidar da gente?", diz.
O jovem elogia a política linha-dura de migração de Trump, pautada pelo cerco a pessoas em situação irregular e pelo veto à entrada de refugiados e migrantes em busca de asilo.
"Não estou de acordo que qualquer um entre neste país. Antes do ano 2000, meu pai dizia que muita gente entrava e saia. O que acontece quando muita gente entra e sai? Terrorismo, veja as Torres Gêmeas. Entendo que todo mundo queira uma vida melhor. Mas muita gente que vem, não todos, são delinquentes. Vêm fugindo de seus países, porque querem matá-los, e podem seguir fazendo aqui o que faziam lá", diz.
Deportações
O clima segue amigável na mesa dos Cano e Zuniga, mas os pais argumentam contra a defesa do filho a deportações.
"É isso que eu falo para ele. Se seus pais não tivessem papéis direitinho e nos mandassem para o nosso país, o que você faria aqui? Eu faço a pergunta a ele e é preciso que ele analise. Se não tivéssemos status legal aqui, ele poderia acabar sozinho. E o que faria sozinho aqui?"
Junior fica em silêncio, até a reportagem pedir para ele responder.
"Iria trabalhar e seguir adiante."
"Ou pedir ajuda a eles. Eu sempre digo: quando você está em outro país ilegalmente, seu dia vai chegar. Você não pode ficar bravo se mandarem de volta, porque não é seu país. Não se pode ficar bravo. Se você estava agindo bem, dá pena porque você não é uma pessoa má. Mas se estava fazendo coisas erradas em um país que não é o seu... que os mandem (embora). Fácil", continua Oscar Junior.
Apesar de votar em Biden, a mãe, Salma, diz concordar com o filho em certos pontos.
"Às vezes, eu apoio o que ele diz sobre Trump. Na economia, sim, Trump manteve bem. Tem que falar das coisas boas e más dele. O governo dele deportou menos que o do Obama, o Obama deportou mais", ela afirma.
É verdade. Segundo um levantamento do jornal Washington Post, 1,18 milhão de pessoas foram deportadas nos 3 primeiros anos de governo Obama, contra em torno de 800 mil sob Trump.
Só em 2012, o governo democrata deportou 409.849 pessoas. Segundo o levantamento, o máximo de deportados em um ano na gestão Trump seria de 260 mil.
Mais de uma vez, Biden classificou a política migratória de seu ex-companheiro de chapa como um erro. No último debate entre os candidatos à presidência, em 22 de outubro, ele voltou a dizer que Obama falhou e subiu o tom contra as críticas do adversário.
"Serei o presidente dos Estados Unidos, não o vice-presidente dos Estados Unidos", disse Biden. "Deixei bem claro que, em 100 dias, vou enviar ao Congresso um caminho para a cidadania para mais de 11 milhões de pessoas sem documentos."
Racismo
Mas é no debate sobre racismo que a fissura familiar se mostra mais profunda.
"Trump pode ter coisas boas, mas é muito racista", diz a mãe. "Veja como ele age com aqueles Proud Boys."
Formado por radicais e supremacistas brancos, o Proud Boys é um grupo formado estritamente por homens, geralmente defensores de Donald Trump. Pivôs da principal controvérsia do primeiro debate presidencial, em 29 de setembro, eles foram classificados pelo FBI em 2018 como "grupo extremista" e são definidos como "grupo de ódio" pelo Southern Poverty Law Center, tradicional organização que mapeia intolerância nos EUA.
Perguntado pelo moderador Chris Wallace durante o debate se condenaria o grupo, Donald Trump se recusou a criticá-los e se limitou a pedir para que eles "recuem e aguardem".
Membros do grupo comemoraram e responderam, na mesma noite, que "estão a postos".
"Pode ver agora. Os brancos estão contra os negros. Muitos policiais brancos matando negros, e não só policiais. Há pouco tempo, meu filho que me mostrou o jornal, dois caras, pai e filho em uma caminhonete, mataram um negro na Carolina do Norte. Quem proporcionou tudo isso? Donald Trump. Por quê? Porque ele incita a violência", afirma o pai.
Zuniga continua: "Então, ele dividiu o país. Em quatro anos, dividiu o país de maneira horrível e colocou brancos contra negros. Olha o caso daquele policial que matou um homem negro com o joelho no pescoço. Matou como se tivesse matado um animal. Não deveria ser assim. Eu acho que não deveria ser assim".
Apesar de concordar que Trump seja um "pouco racista", o filho enxerga o caso de maneira bastante distinta.
"Acho que ele é um pouco racista. Mas, não sei, é pela maneira que fala, às vezes ele não sabe falar" , diz Junior. "Meu pai diz que o caso dos policiais é racismo. Eu digo - não é racismo. Se um policial me para e me manda pôr as mãos na cabeça, eu vou fazer o que ele diz porque eles são a lei. Tem que respeitar a lei. O que acontece é que muita gente não quer respeitar a lei, quer passar por cima da lei. Especialmente os afroamericanos, eles querem passar por cima de todo mundo", diz o jovem, que tem ascendência negra.
"E os policiais também são humanos, eles querem chegar a suas casas no fim do dia. Eles não sabem. Se param meu carro, não sabem o que tenho comigo, se o posso matar. Um policial é o que mais sofre em uma parada. Então, sei que às vezes fazem mal, tratam mal pessoas desarmadas, mas as pessoas não querem respeitar a lei. E é isso que passa com Biden. Se ele ganhar, não vai haver ordem. Não vai haver respeito."
Coronavírus
A conversa evolui para o cenário pós-eleição.
Em uma eventual derrota de Trump, Junior enxerga uma "guerra civil".
"Perguntaram a Trump e ele disse que, se perdesse justamente, ele entregaria o poder. Mas me lembro que disse também que se perdesse injustamente, não iam tirá-lo do poder. E é aí que pode haver uma guerra civil", diz o jovem.
"As pessoas estarão protegendo o presidente para que não o tirem, enquanto os outros estarão brigando para que o tirem."
O pai intervém.
"E o que quer dizer isso? Ele não querer entregar o país. Que é um segundo Hugo Chávez", afirma.
Em quase uma hora de conversa, pais e filho discordam sobre as políticas de saúde, impostos, relações com a China e a condução da pandemia do novo coronavírus no país.
"Ele sabia da pandemia, e não fez nada. Ele disse uma vez numa entrevista que se morressem 100 mil estadunidenses não seria nada", afirma Zuniga.
No fim de março, em fala a jornalistas na Casa Branca, Trump disse que se seu governo conseguisse manter as mortes abaixo de 100 mil, teria feito "um ótimo trabalho".
Hoje, há mais de 225 mil mortos no país.
"Nós damos graças a Deus, que nos protegeu até agora dessa doença. Muita gente não pode superar. Porque é um gasto. É uma enfermidade muito cara. Você pode ir ao hospital, mas quando vier a conta virá quanto? US$ 200 mil, 300 mil... Como vai pagar? Ele se opunha a máscara. O que aconteceu? Deus o castigou", prosseguiu o pai, fazendo menção ao fato de Trump ter contraído a doença.
"Há muitas pessoas sozinhas neste país", completa a mãe, em referência aos que não têm apoio financeiro.
É neste momento que os três começam a concordar pela primeira vez.
"O coronavírus matou Trump", diz Junior. "Muita gente perdeu seus familiares e está brava com ele. E não é culpa dele. Digo, ele tem culpa e não tem culpa. Muita gente, mesmo os republicanos, está com raiva porque perdeu entes queridos."
O jovem conclui, dessa vez com o apoio dos pais:
"Por isso, infelizmente, eu acho que Biden vai ganhar."
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