Brasil é 'racista' e parece executar 'indesejados' com conivência da Justiça, diz Comissão Interamericana da OEA
Racismo e discriminação contra negros, indígenas, mulheres, camponeses, sem-teto e moradores de favelas. Trabalho análogo à escravidão e tráfico de pessoas. Presos, migrantes e LGBTs em risco. Insegurança, crime organizado, milícias, facções e uma recorrente resposta violenta do Estado. Impunidade e ataques à liberdade de expressão e de imprensa.
Estes e outros assuntos são explorados em mais de 200 páginas de um duro relatório recém-enviado ao governo brasileiro pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos), principal órgão multilateral dedicado ao tema em todo o continente.
Feito com "o objetivo de aferir os principais desafios aos direitos humanos no país", o documento, ao qual a BBC News Brasil teve acesso, registra centenas de falhas do Estado brasileiro, seja por "omissão, ineficiência ou ação direta de governos" - caso, por exemplo, de episódios confirmados de mortes e impunidade ligados à violência policial em todo o país.
Só em 2019, 6.357 pessoas foram mortas por policiais no Brasil - o maior patamar desde o início dos levantamentos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2013. A título de comparação, a letalidade policial foi 5 vezes maior no Brasil do que nos EUA no mesmo ano.
Em um dos momentos mais veementes do texto, a Comissão indica a existência de um "sistema estruturado de violência e execução de pessoas 'indesejadas' na sociedade brasileira" pela combinação de violência policial e impunidade, que contaria com a "proteção do sistema de Justiça".
O conteúdo do relatório é especialmente enfático em relação ao racismo, à discriminação e à violência de gênero no Brasil, descritos como motores de um ciclo histórico e perverso de desigualdade, pobreza e crimes.
O texto, por outro lado, "reconhece que o Brasil possui um Estado de Direito baseado em sólidas instituições democráticas".
"Contudo", prossegue o texto, "faz um alerta de que, recentemente, esse sistema vem enfrentando desafios e retrocessos".
Procurado pela BBC News Brasil, o governo brasileiro, por meio do ministério de Relações Exteriores, informou que deve enviar comentários após a publicação da reportagem. As respostas serão incluídas neste texto.
Bolsonarismo
Braço da OEA responsável por vigiar a garantia de direitos humanos em todo o continente, a Comissão foi criada em 1959 e tem sede em Washington, nos EUA. Entre diferentes atribuições, ela apresenta casos de violações à Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA e atua frente ao tribunal em casos que envolvam crimes cometidos por Estados.
Sem citar nominalmente o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), o texto frisa que a facilitação promovida pelo atual governo no acesso a armas de fogo será incapaz de conter ou reduzir a violência.
Ao contrário, segundo o órgão, a política armamentista deve aumentar a criminalidade, além de "minar a confiança dos cidadãos em relação ao Estado e aprofundar fissuras históricas do tecido social".
"A Comissão vê com extrema preocupação as tentativas do Estado de ampliar, mediante o uso de decretos presidenciais, o acesso dos brasileiros às armas de fogo, que poderiam ademais, incrementar exponencialmente a violência perpetrada contra as mulheres", ressalta a entidade.
Procurado, o Palácio do Planalto não respondeu ao pedido de comentários enviado pela reportagem.
No relatório, a entidade também mostra "preocupação" em relação à abordagem bolsonarista sobre a ditadura militar e a tortura, condenando a "negação desse passado histórico por parte do Estado brasileiro" e a impunidade da "maioria dos crimes" cometidos no período.
O órgão ainda critica medidas tomadas pelo governo Bolsonaro como a extinção do ministério do Trabalho ("o que poderia enfraquecer esforços para erradicar o trabalho em condições semelhantes à escravidão e ao trabalho infantil") e o fim de políticas relacionadas à moradia, participação da sociedade em políticas públicas, reforma agrária, entre outras.
Dados públicos da comissão mostram que, desde a posse de Bolsonaro até o fim do ano passado, o Brasil havia sido alvo de mais de 45 críticas públicas, petições e recomendações, além do relatório especial em fase de finalização.
Apesar de duros embates com gestões anteriores (Dilma Rousseff chegou a anunciar a saída da comissão após críticas à usina de Belo Monte), nunca na história da CIDH o Brasil foi objeto de tantos chamados.
Longo trabalho
A análise disponível no relatório, porém, vai muito além do atual governo e oferece um raio-X sobre o Brasil que não é visto desde 1995, data da primeira visita oficial da Comissão Interamericana de Direitos Humanos ao país para a elaboração de um relatório semelhante.
Publicado nesta sexta-feira (05-03) pelo órgão da OEA, o texto é resultado de mais de dois anos de um trabalho que começou oficialmente em novembro de 2018, em visita oficial de autoridades e membros da Comissão a oito estados brasileiros, além do Distrito Federal.
Na viagem oficial, a Comissão Interamericana se reuniu com ministros, juízes do Supremo Tribunal Federal, membros da Procuradoria-Geral da República, de Ministérios Públicos e Defensorias, além de cidadãos comuns, organizações da sociedade civil e movimentos sociais.
"A Comissão também coletou centenas de depoimentos de vítimas de violações de direitos humanos e seus famíliares, e analisou milhares de documentos, leis, projetos de lei e outras informações", segundo registros oficiais.
As atividades incluíram visitas a prisões federais, à região conhecida como "cracolândia", em São Paulo, a comunidades indígenas e quilombolas e bairros em periferias na Bahia, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Rio de Janeiro, São Paulo, Roraima e Brasília.
Reunindo também uma série de referências a episódios e documentos posteriores à visita, o trabalho especial da Comissão Interamericana sobre o Brasil se encerrou em dezembro de 2020, depois do recebimento de comentários e informações finais do governo brasileiro.
Tanto a visita quanto o relatório foram elaborados a convite do próprio governo do Brasil, em novembro de 2017, à época chefiado por Michel Temer.
Discriminação em polícias e tribunais
O relatório critica a atuação de policiais em operações envolvendo negros, mulheres e minorias ao citar índices desproporcionais de violência contra estes grupos.
"A CIDH observa que o país tem tido grande dificuldade em assegurar o direito à segurança cidadã a um amplo contingente da sua população", diz o texto.
"As pessoas afrodescendentes, especialmente jovens do sexo masculino e de origem familiar pobre, figuram como vítimas preponderantes de atos de violência letal intencional, grande parte dos quais são cometidos em contexto de ação policial."
Na opinião da Comissão, "há um alto índice de impunidade desses crimes, o que, em intersecção com a discriminação estrutural, consolidam um diagnóstico de racismo institucional" no país.
O texto ressalta que a "polícia brasileira é uma das mais letais no mundo, bem como a que mais tem profissionais assassinados", e aponta um processo nocivo "de militarização da segurança pública, que, por sua vez, acaba por consolidar uma lógica da guerra nos centros urbanos e rurais".
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos vai além e destaca o papel da Justiça neste processo.
"Tal desigualdade é reproduzida ou mesmo ampliada pela atuação do sistema de Justiça criminal: por um lado, é crônica a impunidade dos crimes cometidos contra essas populações mais vulneráveis; e, por outro, é desproporcional o impacto do aparato repressivo do Estado contra essas mesmas populações."
Ainda segundo o órgão, "permanecendo impunes, tais violações cometidas por agentes de segurança pública atingem um caráter estrutural, sistemático e generalizado em todo o país."
A CIDH nota ainda que não apenas casos de massacres envolvendo agentes de segurança, mas também casos de pessoas envolvidas no aliciamento e utilização do trabalho escravo no Brasil terminam impunes.
"Na opinião da Comissão, tal característica (a violência policial) poderia indicar a existência de um sistema estruturado de violência e execução de pessoas 'indesejadas' na sociedade brasileira, que contariam com a proteção do sistema de Justiça".
O texto aponta que este contexto sugere "um processo de 'limpeza social' destinado a exterminar setores considerados 'indesejáveis', 'marginais', 'perigosos' ou 'potencialmente delinquentes', que conta com a anuência estatal".
Milícias
A Comissão aponta que, só em 2019, o Brasil registrou oficialmente 1.254 episódios envolvendo conflitos pela terra em todo o país, um aumento de 47% desde 2010.
O órgão enumera episódios de violência envolvendo tiros e incêndios criminosos envolvendo "forças de segurança pública e seguranças particulares conhecidos como 'jagunços'."
A Comissão também diz que "recebeu com preocupação a informação de que o Estado estaria promovendo a legalização de milícias e, de certa forma, armando-as em territórios rurais, além de estar facilitando a aplicação da excludente de ilicitude das forças militares na atuação voltada à reintegração de posse."
O órgão destaca que o Brasil se tornou, em 2017, "o país com o maior número de assassinatos de defensoras e defensores do meio ambiente no mundo".
"(A Comissão) reitera seu repúdio e preocupação com o assassinato com requintes de execução da vereadora Marielle Franco, que hoje ainda se encontra em investigação no nível estadual."
Em relação às conhecidas milícias urbanas, envolvidas no assassinato da vereadora, segundo o Ministério Público do Rio de Janeiro, o texto cita "a dificuldade do Estado de oferecer respostas sólidas, sistêmicas e sustentáveis para a violência e a insegurança nos últimos 23 anos, articulando os diferentes níveis da federação e as diferentes forças policiais em torno de medidas que conjugam prevenção e repressão".
"(Isso) criou ambiente fértil para o surgimento e a ampliação de organizações criminosas, como as chamadas milícias", diz a comissão.
Mulheres e LGBTs
Citando uma série de dados sobre feminicídios, com maior frequência entre mulheres negras, a Comissão informa que recebeu uma série de denúncias sobre piora em níveis de violência contra as mulheres.
O órgão lembra que "o mero reconhecimento da violência contra a mulher como problema público, e não como um dado das relações privadas, levou décadas para ocorrer no país".
O texto pede que o governo e a sociedade brasileira combatam com empenho a "cultura do estupro" no país.
"A Comissão reitera suas recomendações sobre a importância de se promover leis e políticas públicas que busquem, por meio da educação em direitos humanos, abordar e eliminar preconceitos estruturais, a discriminação histórica, bem como os estereótipos e conceitos falsos sobre mulheres."
Ainda segundo o relatório, "a condição de gênero mostrou-se fator agravante das experiências de desigualdade e discriminação" nos "processos estruturais de violação dos direitos humanos no país".
"O machismo e a misoginia continuam relegando a mulher a uma posição secundária na economia e nos assuntos públicos, com evidentes diferenças salariais no mercado de trabalho e sub-representação nos parlamentos e demais poderes, sobretudo nos cargos de cúpula"
O órgão também observa uma "tendência de regressão na proteção e promoção dos direitos das pessoas LGBTI no país", bem como "o aumento do uso de discursos que incitam ao ódio e que tendem a aumentar as taxas de ataques contra pessoas de diferentes orientações sexuais e identidades de gênero".
Em mais uma referência ao bolsonarismo, citando a atuação de "um dos candidatos à presidência do Brasil" em outubro de 2017, o texto resgata a controvérsia em torno de uma cartilha educacional sobre diversidade criada para combater o bullying nas escolas que veio a se tornar pejorativamente conhecida como "kit gay".
"A inverdade das notícias sobre o 'kit gay' foi confirmada por decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que solicitou a suspensão de links de sites e redes sociais relacionados à denominação", diz o texto, que também reconhece "avanços importantes" como a garantia do direito ao casamento e uso do nome social e a ampliação da participação e candidatura de pessoas LGBTI em eleições.
Por outro lado, o órgão faz um alerta.
"O Brasil continua registrando elevadíssimos índices de violência contra pessoas LGBTI, em especial lésbicas e mulheres trans; e que, na medida em que uma retórica de "defesa da família" e das tradições ganha tração no âmbito na sociedade, diversos direitos dessas pessoas encontram-se sob ameaça."
O relatório é finalizado com uma série de recomendações "para consolidar um sistema de promoção e proteção dos direitos humanos, de acordo com os compromissos assumidos pelo Estado nos âmbitos interamericano e internacional."
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