Conspiração e apuração paralela: a desinformação sobre urnas que circula no WhatsApp e Telegram às vésperas da eleição
Relatório do NetLab, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, identificou compartilhamento de milhares de mensagens em dois meses, além de grupos criados para contagem pública dos votos.
À medida que se aproxima o dia 2 de outubro, data do primeiro turno, multiplicam-se nos aplicativos de mensagem WhatsApp e Telegram postagens com desinformação que questionam a integridade das eleições no Brasil.
É o que mostra um relatório elaborado pelo NetLab, grupo de pesquisa da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), obtido com exclusividade pela BBC News Brasil.
A pesquisa identificou a circulação de informações falsas que citam supostas "evidências" de que as urnas estão sendo fraudadas e mensagens que trazem orientações problemáticas sobre como os eleitores deveriam agir no dia e durante a votação, com incentivo ao uso do celular na seção eleitoral (o uso do aparelho na hora de votar, porém, é proibidor por lei).
O relatório Ameaças à segurança da votação também aponta para a existência de 27 grupos no aplicativo Telegram, criados para cada estado do país com o objetivo de realizar uma suposta "contagem pública" dos votos no dia das eleições. Ao todo, os grupos reúnem quase 90 mil membros.
Para investigar a circulação das informações falsas, que têm potencial de induzir os eleitores a comportamentos nocivos e ameaçar a segurança das eleições no dia da votação, o Netlab analisou mais de 4 mil mensagens publicadas no WhatsApp e Telegram entre 25 de julho e 26 de setembro de 2022.
Todas as postagens trazem algum tipo de conteúdo com desinformação que questiona a confiabilidade do sistema eleitoral, promove contagens paralelas ou incentiva a desobediência civil.
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No WhatsApp, no período analisado, foram identificadas 2 mil mensagens com termos relacionados à segurança das eleições compartilhadas por mil usuários únicos em 150 grupos públicos monitorados.
No Telegram, os pesquisadores contabilizaram 2.700 mensagens enviadas por 777 usuários únicos em 164 grupos e canais públicos. Ao todo, os ambientes monitorados reúnem mais de 9 mil integrantes, segundo o NetLab.
Em ambos os aplicativos, foram identificados picos de compartilhamento desinformativo sobre as urnas nos dias que antecedem a eleição de 2 de outubro.
No WhatsApp, houve um primeiro crescimento em 6 de setembro, antes das celebrações do Dia da Independência e pouco depois do anúncio pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de que celulares seriam proibidos nas cabines de votação.
No fim de setembro, o volume de mensagens sobre a segurança eleitoral voltou a crescer, com intenso compartilhamento de convites para os grupos que propõem alternativas para uma "contagem pública dos votos".
No Telegram, o maior pico de compartilhamento de mensagens foi observado no dia 22 de setembro, com quase 200 mensagens enviadas nos grupos monitorados em um único dia. Desde então, a tendência segue sendo o crescimento do assunto na plataforma.
"Identificamos muitos textos idênticos sendo replicados, o que nos leva a crer que há uma espécie de disparo em massa desses conteúdos, usando tecnologia ou por pessoas", diz Rose Marie Santini, fundadora do NetLab e professora da UFRJ.
A pesquisadora enviou o relatório ao Tribunal Superior Eleitoral para verificação dos conteúdos. O tribunal e a lei proíbem o compartilhamento de desinformação que ameace a integridade do processo eleitoral.
Segundo uma resolução de 2021, é vedada a divulgação ou compartilhamento "de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados" que atinjam os processos de votação e a apuração e totalização de votos.
Em nota enviada à reportagem, o WhatsApp afirmou que "é a plataforma de mensagens que mais coopera ativamente com as autoridades na proteção da integridade das eleições''.
"Nesse sentido, destacamos nossas parcerias com TSE e diversos TREs, que incluem contas oficiais no aplicativo para oferecer serviços da Justiça Eleitoral à população e são fonte de informação confiável sobre todo o processo eleitoral", disse a empresa.
A plataforma afirmou ainda que "as conversas trocadas em grupos específicos, com um viés altamente politizado, de modo algum representam as conversas dos usuários brasileiros ou a forma pela qual o WhatsApp é majoritariamente utilizado no país".
"É importante que comportamentos inapropriados, além de conteúdos ofensivos e possivelmente ilegais, sejam denunciados às autoridades competentes", diz ainda a nota.
Em nota enviada à BBC News Brasil, o Telegram afirmou que vem adotando proativamente medidas no Brasil para "detectar e mitigar o espalhamento de desinformação e de conteúdo que viola as regras do serviço". A empresa diz ainda ter uma linha de comunicação direta com o TSE desde maio de 2022, além de trabalhar com agências independentes de checagem de informação, como Aos Fatos e Estadão Verifica.
Desinformação e ameaça às urnas
Entre as fake news que circulam nos grupos, destacam-se mensagens que questionam a segurança do sistema eleitoral e atacam as urnas eletrônicas.
Em ambos os aplicativos de mensagem, circula uma teoria conspiratória que supostamente comprovaria que urnas foram violadas em Itapeva, cidade do estado de São Paulo.
Imagens mostram funcionários de uma empresa contratada pelo TSE via licitação pública realizando procedimentos técnicos nas urnas.
O fato de este serviço ter sido realizado na sede de um sindicato, ao lado do cartório eleitoral da cidade, gerou alarde e denúncias de que as urnas estariam sendo violadas. "Golpe à vista", diz uma das mensagens.
As informações foram desmentidas pelo Tribunal Superior Eleitoral, que explicou que o procedimento de carga e lacração das urnas eletrônicas é uma cerimônia pública, e foi acompanhado pela Justiça Eleitoral e fiscalizado por várias entidades e cidadãos presentes.
Desde 2014, por falta de espaço físico no cartório eleitoral de Itapeva, este processo é realizado na sede sindical vizinha ao local.
Na última semana de setembro, também foram compartilhados áudios que denunciavam urnas eletrônicas supostamente sendo enviadas à cidade de Cordeiro, no Rio de Janeiro, com votos a favor do ex-presidente e candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT) carregados em sua memória interna.
O material é falso. Segundo a agência de checagem Boatos.org, o "texto que circula é vago, alarmista, tem erros de português (a pessoa erra até o nome do TSE) e não cita qualquer fonte confiável que confirme a história".
Desde julho, circulam ainda no WhatsApp mensagens sobre suposta declaração do ex-presidente da Câmara dos Deputados Marco Maia (PT-RS) sobre um suposto plano de fraude na totalização dos votos, que teria o objetivo de favorecer Lula e outros candidatos de esquerda. A informação já foi investigada por veículos de checagem e constatada como falsa.
No Telegram, uma mensagem que começou a circular no início de setembro conspira sobre diversas ações que estariam sendo empreendidas por "corruptos do TSE" e "militantes de cartórios" para sabotar eleitores do presidente Bolsonaro e anular seus votos.
As ações incluem o cancelamento de títulos de eleitor, recrutamento de militantes de esquerda para atuarem como mesários e auxiliarem na fraude e falsas alegações de falhas nas urnas em estados em que Bolsonaro lidera.
Segundo o NetLab, as Forças Armadas também são mencionadas regularmente nos grupos dos aplicativos, ainda que de forma menos intensa. Militares surgem na narrativa como uma possível salvação nesse primeiro momento, com a proposta de realizarem uma "apuração paralela" dos votos no dia das eleições.
Para Santini, especialista do NetLab, as mensagens fazem parte de uma narrativa coordenada, que inclui também declarações feitas publicamente pelo presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL) sobre o sistema eleitoral.
Reportagem da BBC Brasil mostrou que o mandatário já atacou o sistema de votação mais de 100 vezes. Durante a maior parte do seu mandato e da corrida eleitoral, Bolsonaro levantou dúvidas, sem apresentar evidências, de que a urna eletrônica não seria à prova de fraudes.
"Ao mesmo tempo em que Bolsonaro fala sobre o tema não só em lives, mas em entrevistas e sabatinas, a circulação de mensagens nos aplicativos reforçam, embasam e dão escala ao discurso", diz Santini. "Para a base de eleitores do presidente isso serve como reforço de viés, mas para o resto da população essas mensagens têm um efeito de semear dúvidas sobre o processo eleitoral, algo que é muito grave."
'Contagem paralela'
Nos grupos monitorados, o NetLab identificou grande compartilhamento de links que levam aos 27 grupos no Telegram que prometem reunir usuários para uma "contagem pública" dos votos, a ser feita com fotos dos boletins de urna.
As comunidades virtuais são divididas por estados. Os grupos com eleitores do Rio de Janeiro, São Paulo e Acre são os que mais possuem membros.
A orientação é que os eleitores fotografem o comprovante de votação e enviem as imagens para o grupo do seu estado.
"Não esqueçam: com urnas eletrônicas quem escolhe não é o povo. Não é você. Se quer votar e escolher, exija a materialidade e a contagem pública de 100% dos votos apurados", diz uma das mensagens.
Além disso, o estudo ainda identificou postagens que incentivam o uso de sites e aplicativos independentes que prometem realizar uma espécie de contagem paralela.
Após o ato de 7 de setembro, por exemplo, circulou o link do Você Fiscal, projeto de mobilização civil, criado para "controle e contagem de votos" por meio de fotos dos boletins de urna, que deveriam ser enviados ao site ou aplicativo para comparar com o resultado oficial. Mas vale lembrar que o projeto Você Fiscal está inativo desde 2016.
Além disso, uma corrente veiculada no WhatsApp também divulga o aplicativo Totalização Paralela. Com um leitor de QR Code, ele permite escanear os boletins de urna, transmitir e gravar a imagem em um servidor privado.
Mas o que são esses boletins de urna?
Depois que você digita o número do seu candidato na urna eletrônica e aperta o botão confirma, sua escolha será gravada no Registro Digital do Voto, um compartimento dentro da urna que mantém, em ordem aleatória, cada um dos votos registrados naquela máquina.
Neste momento, é como se você estivesse depositando numa velha urna de lona a sua cédula de papel. Ou como se derramasse uma gota de água dentro de um copo. Impossível saber quem despejou cada gota ? ou cada voto ? na urna.
Só às 17h do dia da eleição, logo após o encerramento da votação, que cada urna contará eletronicamente os votos digitados ao longo do dia.
Quando termina o cálculo, a urna imprime os resultados em ao menos cinco vias, são os chamados boletins de urna. Um deles fica na entrada do lugar de votação. Se for uma sala de aula de escola, onde muitos dos brasileiros costumam votar, por exemplo, é na porta dela que o boletim será colado. As outras cópias são guardadas pela Justiça Eleitoral e entregues a fiscais de partidos políticos. Você também poderá acessar os boletins de urna online, em tempo real.
Esses boletins de urna têm justamente a finalidade de assegurar que os votos depositados na urna serão idênticos aos contabilizados no TSE, já que permitem que qualquer pessoa compare o boletim que é impresso ao final da votação em cada sessão eleitoral com os votos que foram transmitidos no sistema da Justiça Eleitoral. Isso impede que haja alguma fraude durante a transmissão ou contabilidade dos votos.
'Desorientação'
Circulam ainda muitas mensagens que sugerem aos eleitores ações como levar dois celulares para a votação, destruir urnas eletrônicas e utilizar aplicativos impróprios para a realização de denúncias, como forma de impedir que supostas fraudes se concretizem.
No Telegram, mensagem de um suposto mesário orienta que eleitores levem dois celulares e entreguem apenas um deles ao mesário de sua seção, de modo a enganá-lo e levar outro para a cabine de votação.
Outra mensagem sugere também que a forma de combater a decisão "inconstitucional" (de proibir o uso do celular na cabine de votação) é a depredação das urnas em caso de suposta fraude.
Um vídeo ainda aconselha eleitores a orientarem mesários para a realização de denúncias no aplicativo Pardal, da Justiça Eleitoral Brasileira.
O Tribunal Superior Eleitoral, porém, afirma que essa ferramenta é exclusiva para receber denúncias de propaganda eleitoral irregular, compra de votos, abuso de poder econômico etc.
O tribunal orienta que, em caso de eventual defeito ou mau funcionamento da urna eletrônica, o eleitor apresente queixa diretamente ao presidente da mesa de voto. Em seguida, um juiz deve ser chamado para registrar a ocorrência.
Segundo Santini, do NetLab, esse tipo de orientação problemática tem potencial para causar transtornos no dia da votação. "A orientação recebida pelos mesários é de que quem não entregar o celular não poderá votar. Isso pode causar muita confusão", diz.
Anúncios com desinformação em redes sociais
A pesquisa do NetLab ainda se dedicou a monitorar anúncios financiados nas plataformas Meta, Instagram e Facebook, com pedidos de implementação do voto impresso e da "contagem pública" dos votos.
Na interface da Biblioteca de Anúncios da Meta, foram contabilizados 130 anúncios que citam "contagem pública" dos votos entre 25 de julho e 26 de setembro.
Apenas entre 15 e 25 de setembro, foram veiculados ainda 280 anúncios que mencionam o termo "voto impresso".
Segundo os pesquisadores, muitas das peças foram financiadas por candidatos que concorrerão a cargos públicos em 2 de outubro.
Uma candidata a deputada federal, por exemplo, diz que defende a impressão e conferência do voto ainda na cabine e utiliza a pauta da maior transparência no processo eleitoral para conquistar novos eleitores.
A postagem patrocinada foi vista por mais de 70 mil pessoas entre 15 e 24 de setembro.
Outro candidato à Câmara dos Deputados afirma que a decisão do Tribunal Superior Eleitoral de proibir o uso de celulares em cabines eleitorais seria anticonstitucional e um ataque à democracia.
Entre outras coisas, ele diz que o povo não pode votar sob uma atmosfera de medo e possíveis prisões e que a decisão é "mais um passo" para a instauração de uma ditadura no Brasil, movimento que já estaria em curso, segundo esse candidato. Até 50 mil pessoas visualizaram o anúncio.
Em agosto, a Meta anunciou que iria proibir anúncios "questionando a legitimidade" da eleição.
Em resposta enviada à reportagem, a empresa Meta afirmou que, por não ter acesso ao relatório completo, não poderia comentar a respeito de suas conclusões. Disse, porém, que tem se preparado "extensivamente para as eleições de 2022 no Brasil".
"Lançamos ferramentas que promovem informações confiáveis por meio de rótulos em posts sobre eleições, estabelecemos um canal direto para o Tribunal Superior Eleitoral nos enviar conteúdo potencialmente problemático para revisão e seguimos colaborando com autoridades e pesquisadores brasileiros", diz a nota enviada à BBC Brasil.
"Nossos esforços na última eleição do Brasil resultaram na remoção de 140.000 conteúdos no Facebook e no Instagram por violarem nossas políticas de interferência eleitoral. Também rejeitamos 250.000 submissões de anúncios políticos não autorizados. Estamos comprometidos em proteger a integridade das eleições no Brasil e no mundo."
- O texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63097867
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