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Quais as relações de Lula e Bolsonaro com governos autoritários?

Lula com o venezuelano Hugo Chávez, em 2010, e Bolsonaro com o húngaro Viktor Orbán, em 2022 - EBC e Presidência da República
Lula com o venezuelano Hugo Chávez, em 2010, e Bolsonaro com o húngaro Viktor Orbán, em 2022 Imagem: EBC e Presidência da República

Mariana Schreiber

Da BBC News Brasil, em Brasília

29/10/2022 06h32Atualizada em 29/10/2022 09h52

A relação do PT e do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva com governos considerados autoritários na América Latina, como os de Cuba, Venezuela e Nicarágua, tem sido fortemente explorada na campanha presidencial por seu adversário, o presidente Jair Bolsonaro (PL).

De outro lado, críticos do atual mandatário o acusam de hipocrisia nesses ataques a Lula, já que seu governo priorizou o relacionamento com países que não são considerados democráticos, como o regime de extrema direita da Hungria ou a monarquia absolutista da Arábia Saudita.

Esses críticos de Bolsonaro dizem ainda que seu governo tem flertado com medidas autoritárias típicas de ditaduras, como o desejo de ampliar o número de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) para conseguir maioria favorável na Corte, uma medida que foi adotada tanto na Venezuela como na Hungria.

Entenda melhor a seguir a relação de Lula e Bolsonaro com governos considerados autoritários e que riscos isso representaria em um novo governo do petista ou em um segundo mandato do atual presidente.

Lula, PT e as ditaduras de esquerda

"Se o PT voltar, o Brasil vai virar uma Venezuela" - essa ideia de que o Brasil viraria uma ditadura e entraria numa severa crise econômica e social, como o país comandando por Nicolás Maduro, caso o partido de Lula volte ao poder no Brasil, tem sido repetida com insistência por Bolsonaro e seus apoiadores desde a disputa de 2018, em que o atual presidente derrotou no segundo turno o candidato petista, Fernando Haddad.

Na eleição desse ano, a "ameaça venezuelana" tem sido acompanhada da "ameaça nicaraguense", ou seja, o discurso bolsonarista de que Lula adotaria em seu governo medidas semelhantes às do governo autoritário de Daniel Ortega, que comanda o país desde 2007 e tem perseguido diversos grupos opositores, inclusive católicos.

A ação do governo nicaraguense contra o segmento religioso se intensificou a partir de 2018, quando a Igreja Católica protegeu manifestantes que foram duramente reprimidos pelo governo em atos contra a reforma previdenciária, episódio que deixou centenas de mortos no país. Desde então, diversos integrantes da Igreja foram obrigados a deixar a Nicarágua, como Núncio Apostólico, o equivalente da Igreja Católica a um embaixador. Já o bispo Rolando Álvarez, importante voz crítica ao regime de Ortega, foi preso.

A campanha de Bolsonaro tem usado o exemplo nicaraguense para dizer que Lula pretende reprimir a liberdade de culto e fechar igrejas no Brasil.

No entanto, não há nada que comprove a acusação de que Lula e o PT perseguiriam católicos ou outros grupos religiosos, como os evangélicos.

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), inclusive, determinou em 18 de outubro que Twitter e Instagram removessem posts de aliados de Bolsonaro com esse teor. A decisão atingiu postagens dos deputados Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e Carla Zambelli (PL-SP) e do ministro de Minas e Energia, Adolfo Sachsida.

"As publicações transmitem de forma intencional e maliciosa mensagem de que o candidato Luiz Inácio Lula da Silva é aliado político do ditador da Nicarágua Daniel Ortega e, por consequência, apoia e consente com os ilícitos por ele praticados, como a perseguição de cristãos e a tortura", diz trecho da decisão do ministro Paulo de Tarso Sanseverino.

Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil ressaltam que o histórico de governos do PT não mostra qualquer tendência do partido para ações autoritárias, como as adotadas em países como Nicarágua, Venezuela e Cuba, por exemplo.

Por outro lado, dizem, a falta de um crítica dura de Lula e seu partido a abusos desses governos acaba sendo explorada pela campanha bolsonarista.

"O PT tem um histórico, desde os anos 80, de ligação com partidos da esquerda mais moderada de outros países, que adotam uma agenda semelhante de apoio a agendas progressistas e a políticas de redistribuição de renda na América Latina", afirma Denilde Oliveira Holzhacker, professora de relações internacionais da ESPM-SP.

"Só que, por outro lado, os líderes do PT sempre tiveram dificuldade em questionar essa ala da esquerda latino americana autoritária. E essa ambiguidade, essa dificuldade em se posicionar frente a esses governos, tem sido explorada pelos grupos bolsonaristas e, principalmente, pela campanha do Bolsonaro agora", acrescenta ela.

No caso da Nicarágua, por exemplo, o PT tem um histórico de boa relação com Ortega devido a sua liderança na Revolução Sandinista, um movimento popular de esquerda que em 1979 derrubou a ditadura dos Somoza, família que governou o país por mais de 35 anos. Ortega foi eleito presidente pela primeira vez em 1984 e governou até 1990 sob forte oposição dos Estados Unidos, que apoiavam os Somoza.

Após ser eleito novamente em 2007, passou e a governar de forma autoritária e conseguiu alterar as regras do país para permitir a reeleição indefinida.

Em 2021, ganhou um quarto mandato, mas o processo eleitoral foi duramente criticado pela comunidade internacional, que o classificou como "antidemocrático", "ilegítimo" e "sem credibilidade". Mais de 30 líderes da oposição foram presos, incluindo sete candidatos presidenciais que não puderam concorrer.

Lula já se manifestou em defesa da democracia na Nicarágua, mas ele e seu partido não fizeram repúdios mais duros à ditadura de Ortega.

"Se eu pudesse dar um conselho ao Daniel Ortega, daria a ele e a qualquer outro presidente: não abra mão da democracia, não deixe de defender a liberdade de imprensa, de comunicação, de expressão, porque isso é o que favorece a democracia", disse em agosto do ano passado em entrevista a um canal mexicano.

Porém, em novembro de 2021, o PT divulgou uma nota celebrando a terceira reeleição de Ortega, assinada por Romenio Pereira, secretário de Relações Internacionais da legenda. No texto, a legenda classifica o pleito como "uma grande manifestação popular e democrática" e diz que o resultado confirma "o apoio da população a um projeto político que tem como principal objetivo a construção de um país socialmente justo e igualitário.

Logo depois, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, desautorizou a nota e reforçou a posição do partido pela democracia em um post no Twitter, mas sem críticas diretas a Ortega.

"Nota sobre eleições na Nicarágua não foi submetida à direção partidária. A posição do PT em relação a qualquer país é a defesa da autodeterminação dos povos, contra interferência externa e respeito à democracia, por parte de governo e oposição. Nossa prioridade é debater o Brasil com o povo brasileiro", tuitou Hoffmann.

Por outro lado, a presidente do PT endossou outras declarações do partido favoráveis aos regimes de Venezuela e Cuba, ambos países em que há décadas não há alternância de poder e cujos governos são acusados de perseguir a oposição.

No caso cubano, o partido emitiu uma nota apoiando a versão do governo, que desqualificava os protestos da oposição realizados no ano passado como se fossem atos promovidos pelos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, o PT se calou sobre denúncias de abusos na repressão aos manifestantes.

Segundo a organização de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch, os protestos pacíficos foram reprimidos com prisões abusivas. "Na maioria dos casos documentados, as pessoas detidas foram mantidas incomunicáveis por dias, semanas e, às vezes, meses, sem poder telefonar ou receber visitas de seus familiares ou advogados. Algumas foram espancadas, forçadas a agachar-se nuas ou submetidas a maus-tratos, incluindo privação de sono e outros abusos que, em alguns casos, constituem tortura", diz uma relatório da organização.

Segundo o professor de História Contemporânea da USP Lincoln Secco, que há muitos anos acompanha de perto o PT, dois elementos explicam a proximidade que o partido mantém historicamente com forças de esquerda de outros países.

Ele explica que o PT segue a tradição da esquerda internacionalista, que entende que os trabalhadores de diferentes países não têm apenas interesses locais, mas convergem em sua resistência contra a exploração das classes dominantes em diferentes países.

"Então, é normal que os partidos sociais-democratas, comunistas, socialistas, trabalhistas tenham vínculos internacionais", ressalta Secco.

Um segundo aspecto, nota o professor, é o fato de que as esquerdas na América Latina se orientam historicamente pelo anti-imperialismo.

"E o anti-imperialismo acaba também fazendo com que o partido tenha uma política externa de vínculo com outros povos que ele julga que estão combatendo o mesmo inimigo, que seriam os Estados Unidos, principalmente quando eles intervêm em outros países ou apoiam golpes de Estado", acrescenta.

Segundo Secco, embora em seu início o PT tivesse correntes revolucionárias, de viés marxista ou socialista, "o partido caminhou para a defesa da democracia como um valor universal". Por outro lado, a legenda também se guia pelo princípio da "autodeterminação dos povos", que preconiza que não se deve interferir em questões internas de outras nações.

É uma visão que fica clara na resposta que Lula deu a Bolsonaro no debate da TV Bandeirantes, quando foi questionado sobre Nicarágua: "Quem acha que é imprescindível, insubstituível começa a nascer um ditador. Então se o Daniel Ortega está errando, o povo da Nicarágua que puna o Daniel Ortega, se o Maduro está errando, o povo que puna; porque você quem vai punir é o povo brasileiro, dia 30 de outubro, se prepare", disse o petista.

Para o historiador, embora a falta de críticas duras do PT a governos autoritários de esquerda abra espaço para cobranças contra o partido, o histórico dos governos petistas mostra que um nova administração de Lula não representa riscos a democracia.

"O PT já governou o Brasil em quase quatro mandatos consecutivos e ele já deu provas suficientes de que é um partido da ordem democrática, não um partido que contesta essa ordem dentro do Brasil", diz Secco.

O ex-presidente conseguiu formar uma ampla aliança contra Bolsonaro nesta eleição porque antigos adversários do PT veem sua vitória como uma defesa da democracia. É o caso da senadora Simone Tebet (MDB), que ficou em terceiro lugar no primeiro turno presidencial, e de Geraldo Alckmin (PSB), candidato a vice-presidente na chapa de Lula.

Bolsonaro e as ditaduras de extrema direita

Ao mesmo tempo que ataca Lula e o PT pela relação com governos autoritários de esquerda, Jair Bolsonaro priorizou em sua política externa outras nações comandadas por líderes antidemocráticos.

O atual presidente entrou em conflito direto com nações democráticas com as quais o Brasil tinha um histórico de boa relação, como França, Alemanha e Noruega, devido a pressões que sofreu desses governos para fortalecer a preservação da Amazônia. Por outro lado, estreitou relações com a Hungria, cujo primeiro-ministro Viktor Orbán, foi um dos poucos líderes europeus presentes em sua posse, em 2019.

Desde que chegou ao poder, em 2010, Orbán, vem acumulando poderes por meio de uma guinada autoritária que começou no Judiciário e no Legislativo, avançou para a imprensa e chegou às escolas. Em pouco mais de uma década, o primeiro-ministro trocou centenas de juízes das cortes húngaras por aliados, alterou a lei eleitoral para beneficiar seu partido, transformou centenas de jornais independentes em máquinas de propaganda do Estado e chegou a reimprimir livros didáticos de História com conteúdo considerado xenofóbico.

Na avaliação de Kim Lane Scheppele, professora de sociologia e relações internacionais na Universidade de Princeton, nos EUA, Orbán chama atenção da ultradireita por ter conseguido incorporar uma espécie de "ditador do século 21", que corrói as instituições democráticas por dentro, muitas vezes de forma discreta, por meio da lei.

A família Bolsonaro vê a Hungria de Orbán não só como aliada, mas como um exemplo a ser seguido. O presidente, que adiou a visita que pretendia fazer em 2020 devido à pandemia de covid-19, esteve no país em fevereiro deste ano.

"Acredito na Hungria e no prezado Orbán, que eu trato praticamente como um irmão, dadas as afinidades que nós temos na defesa dos nossos povos e na integração dos mesmos", disse Bolsonaro na ocasião.

Já o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) foi recebido pelo primeiro-ministro Húngaro em Budapeste em abril de 2019. Em junho deste ano, o segundo filho do presidente realizou a palestra "Hungria, exemplo a ser seguido" durante a conferência conservadora CPAC Brasil 2022, em que elogiava as políticas de Orbán.

Uma das políticas de Orbán que Bolsonaro tem cogitado tentar implementar no Brasil é a interferência na Suprema Corte.

O primeiro-ministro húngaro aumentou o total de juízes do Tribunal Constitucional de 11 para 15 e indicou todos os ocupantes das quatro novas cadeiras. Proposta semelhante já foi abertamente defendida por aliados do presidente, como o vice-presidente Hamilton Mourão, eleito senador, e o atual líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP).

"Já chegou essa proposta para mim e eu falei que só discuto depois das eleições. Eu acho que o Supremo exerce um ativismo judicial que é ruim para o Brasil todo", respondeu Bolsonaro, sem descartar a ideia, ao ser questionado sobre o tema no início de outubro.

Segundo a professora Denilde Holzhacker, a política externa brasileira tem um compromisso com a promoção da democracia no mundo, desde a redemocratização do país nos anos 80. Na sua visão, o governo Bolsonaro se afastou desse princípio ao priorizar uma aliança ideológica com nações governadas pela extrema-direita, como Hungria e Polônia.

"O argumento de Bolsonaro de que esse relacionamento se dá por pragmatismo é bastante fraco quando a gente olha que são países em que o Brasil não tem um grande relacionamento econômico e sim porque há uma afinidade de agenda e de posições ideológicas", afirma.

Perseguição aos cristãos na aliada Arábia Saudita

A boa relação estabelecida pela família Bolsonaro com o governo da Arábia saudita é outro foco de críticas. A nação foi estabelecida em 1932 pelo rei Abd-al-Aziz, que tomou a província de Hejaz da família Hashemita e uniu o país em torno de seu governo familiar. Desde sua morte, em 1953, ele foi sucedido por vários de seus filhos.

Acompanhado do filho Eduardo Bolsonaro, o presidente se reuniu com Mohammed bin Salman, príncipe herdeiro da Arábia Saudita, durante o encontro do G20 no Japão, em junho de 2019, e depois visitou o país no final daquele ano, com o argumento de atrair investimentos sauditas para o Brasil.

"Temos uma reunião de negócios hoje à tarde. Todo mundo gostaria de passar uma tarde com um príncipe. Especialmente vocês mulheres, né? Tenho uma certa afinidade com o príncipe. Em especial depois do encontro em Osaka", disse Bolsonaro, a jornalistas, na visita ao país.

Enquanto a família presidencial brasileira denuncia a perseguição aos católicos na Nicarágua, fecha os olhos para a opressão ainda mais severa que esse grupo religioso sofre na nação aliada.

Segundo a organização cristã internacional Portas Abertas, a Arábia Saudita é o 11° país do mundo com maior perseguição a cristãos. A Nicarágua não aparece na lista, que anualmente detalha os cinquenta países com pior grau de opressão a esse segmento religioso.

De acordo com o último relatório da organização, na Arábia Saudita "cristãos estrangeiros são impedidos de compartilhar a fé e se reunir para adoração" e "qualquer ação fora da norma pode levar a detenção e deportação". A Portas Abertas diz ainda que "as fontes de perseguição aos cristãos na Arábia Saudita são: oficiais do governo, líderes de grupos étnicos, líderes religiosos não cristãos, cidadãos e quadrilhas, parentes, grupos religiosos violentos".

A repressão não se limita aos cristãos, mas atinge qualquer voz crítica ao governo, segundo a Human Rights Watch: "As autoridades sauditas em 2021 realizaram prisões, julgamentos e condenações arbitrárias de dissidentes pacíficos. Dezenas de defensores e ativistas de direitos humanos continuaram a cumprir longas penas de prisão por criticar autoridades ou defender reformas políticas e de direitos", diz o relatório de 2022 da organização.

"A Arábia Saudita anunciou reformas importantes e necessárias em 2020 e 2021, mas a repressão contínua e o desprezo pelos direitos básicos são as principais barreiras ao progresso. A repressão quase total da sociedade civil independente e vozes críticas impede as chances de sucesso dos esforços de reforma", afirma ainda o documento.

Entre os crimes cometidos pelo governo saudita contra seus críticos, ganhou especial notoriedade o assassinato do jornalista Jamal Khashoggi em outubro de 2018, dentro do consulado da Arábia Saudita em Istambul, na Turquia.

Um tribunal saudita condenou cinco pessoas à morte e prendeu outras três no final de 2019 pelo assassinato do jornalista, num julgamento classificado pela relatora especial da ONU Agnes Callamard como "farsa". Ela havia pedido que o príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman fosse investigado pelo crime.

Ele sempre negou qualquer envolvimento com o assassinato. Em outubro, no entanto, príncipe Salman disse que assumia, pelo crime, "total responsabilidade como líder na Arábia Saudita, principalmente porque foi cometido por indivíduos que trabalham para o governo saudita".

Cobrado no Twitter por sua proximidade com um líder que enfrenta duras acusações, Eduardo Bolsonaro defendeu a aliança com o Arábia Saudita.

"A Arábia Saudita é um regime tradicional que está passando por reformas modernizantes e dando passos graduais rumo a mais liberdade e mais coexistência pacífica com outras cultura e religiões. Tenho orgulho de apoiar nossos aliados nesse processo de abertura e modernização", tuitou em março de 2021.