Guerra na Ucrânia afeta vacinados com a Sputnik e ameaça de vacinação
A invasão russa na Ucrânia impede a aprovação da vacina russa Sputnik por parte da OMS, complica a situação de milhões de vacinados impedidos de viajar e pode afetar dezenas de campanhas de vacinação pelo mundo se as sanções impostas pelos Estados Unidos surtirem efeito sobre a capacidade de produção e de logística da Rússia em tempos de guerra. A Argentina acaba de habilitar uma quarta dose para vacinados com Sputnik que quiserem viajar.
A prolongação da guerra na Ucrânia gera incertezas sobre a capacidade russa de produção e de logística da Sputnik e do seu princípio ativo, tornando incertas as campanhas de vacinação nos 71 países que aplicam o imunizante em todo mundo. Ao mesmo tempo, a recente decisão da Organização Mundial da Saúde (OMS) de adiar uma eventual aprovação da Sputnik até depois do fim da guerra é outro golpe na reputação da Rússia, já abalada pela invasão injustificada.
Antes da guerra, a Rússia já tinha problemas de produção, sobretudo da segunda dose da sua principal vacina que usa dois diferentes adenovírus, um em cada dose. Esses problemas, evidentes desde meados do ano passado, fizeram com que a Rússia não cumprisse prazos de entrega. Os países foram obrigados a aumentar o intervalo entre as doses para além dos 21 dias recomendados e a misturar vacinas numa combinação improvisada.
"De todos os países que aplicam Sputnik, a Argentina é o mais importante do mundo porque foi o primeiro da América Latina a apostar na vacina russa e fez uma aposta alta na quantidade de doses. Mesmo assim, as vacinas não chegaram em tempo e forma, evidenciando uma aposta errada", avalia à RFI o sociólogo e analista político chileno Patricio Navia.
Sem considerar a própria Rússia, a Argentina começou a vacinar com a Sputnik em 29 de dezembro de 2020, tornando-se o segundo país no mundo, depois da aliada russa, Belarus. Até hoje, daquele contrato de 30 milhões de doses, a Rússia ainda deve nove milhões, revelando o tamanho do atraso na entrega.
Depois de deflagrada a guerra, as chances de complicações aumentaram, sobretudo após a aplicação de sanções dos Estados Unidos contra o Fundo Russo de Investimento Direto, um fundo soberano que capta investimentos para a economia russa e que financia a produção da Sputnik, através do Instituto Gamaleya.
Mesmo que a maioria dos clientes da Sputnik não tenham aplicado sanções contra a Rússia, o Fundo Russo pode ter dificuldades de operar através do sistema Swift de transferências internacionais.
América do Sul tem preocupação com o inverno
Uma interrupção na produção ou na logística da vacina afetaria a América do Sul de forma mais preocupante porque a região precisa acelerar a vacinação antes da chegada do inverno.
"Os países que usam Sputnik podem estar com um problema grave, especialmente aqueles que não diversificaram as compras de outros imunizantes", acredita Navia, da Universidade chilena de Diego Portales e da norte-americana New York University.
Na América Latina, a lista de países que aplicam a vacina russa inclui, além da Argentina, Bolívia, Venezuela, Paraguai, México, Nicarágua, Guiana, Honduras, Guatemala, Equador e Chile.
Sem aprovação da OMS
A decisão da OMS, anunciada na semana passada, de adiar qualquer possibilidade de aprovar a Sputnik até depois da guerra foi mais um banho d'água fria na reputação russa.
Há cerca de um ano a OMS tenta, em vão, obter informações científicas completas e fazer inspeções nas fábricas da Sputnik. A última tentativa prevista para 7 de março foi cancelada devido à invasão russa na Ucrânia.
Sem a aprovação da OMS, as cerca de 200 milhões de pessoas vacinadas com Sputnik pelo mundo podem viajar pelos 101 países que aceitam qualquer vacina, mas não podem entrar nem na União Europeia nem nos Estados Unidos.
"Isso leva a opinião pública internacional a preferir as vacinas de laboratórios norte-americanos e europeus. As vacinas chinesas têm menor efetividade diante das novas variantes e sobre a russa há problemas de credibilidade", compara Patricio Navia, especialista em geopolítica.
A credibilidade da Sputnik na própria Rússia é questionada. Apenas metade da população está vacinada com alguma das três vacinas do país (Sputnik V, Novavax, CureVac).
"Os demais fabricantes de vacinas conseguiram compreender o que a OMS lhes pede para uma certificação. Só os nossos não entendem", criticou, através das redes sociais, o Fundo de Luta contra a Corrupção, liderado pelo principal opositor russo, Alexei Navalny, preso após ser envenenado.
No ano passado, Brasil e África do Sul rejeitaram a aprovação do uso emergencial da Sputnik. A brasileira Anvisa, por exemplo, apontou falhas no desenvolvimento e na produção da vacina, falta de dados de controle de qualidade, de segurança e de eficácia. Uma das mais inquietantes dúvidas foi quanto à presença de adenovírus replicantes em todos os lotes avaliados da Sputnik.
Argentina habilita quarta dose
Em agosto de 2020, a Rússia foi o primeiro país do mundo a anunciar uma vacina contra o coronavírus, mas, desde então, o país não divulga a informação completa sobre o seu imunizante. Até mesmo a famosa publicação na revista científica Lancet, em fevereiro de 2021, revelou-se incompleta. Todos os países que aprovaram o uso emergencial da Sputnik fizeram-no sem estudos adicionais.
A falta de uma aprovação por parte da OMS e a pressão interna de boa parte dos 11 milhões de argentinos vacinados com a Sputnik levou o governo a anunciar que vai habilitar uma quarta dose excepcional para aquelas pessoas que receberam o esquema completo russo e que querem viajar. Essas pessoas estavam, até agora, impedidas de entrar na Europa ou nos Estados Unidos.
Aqueles que foram vacinados com as duas doses da vacina russa receberam a terceira dose de outro laboratório poderão, agora, receber uma quarta dose para terem outro esquema completo que não seja com Sputnik. Cerca de 21 milhões de doses da Sputnik foram aplicadas na Argentina.
Sem reputação
A falta de aprovação por parte da OMS, não cumprimento de prazos de entrega devido a atrasos na produção e a deflagração da guerra, que gera incertezas sobre o futuro de dezenas de campanhas de vacinação, afetam a reputação da Rússia, em geral, e de Vladimir Putin, em particular.
O líder russo faz uso da chamada "diplomacia das vacinas" que torna os imunizantes um instrumento de geopolítica, o chamado "soft power". No entanto, a credibilidade da Sputnik está abalada, assim como a reputação de Putin, depois de uma invasão injustificada e dos ataques contra civis.
"Evidentemente, o governo de Putin está com um forte problema de reputação. A Rússia vai precisar de muito 'soft power' para mudar a imagem de Putin como um agressor que bombardeia civis. Putin não está bem na guerra. É difícil usar 'soft power' quando na guerra as coisas não saem como se esperava e a sua reputação está pelo chão", aponta Patricio Navia, visualizando uma oportunidade para os Estados Unidos se aproximarem dos países latino-americanos.
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