Conteúdo publicado há 4 meses

Com votação recorde em 40 anos, Milei assume com o menor apoio no Congresso

Javier Milei, que assume a presidência da Argentina neste domingo (10), tem o maior apoio eleitoral dos últimos 40 anos de democracia, mas, paradoxalmente, o menor apoio legislativo entre todos os presidentes que o antecederam. O desafio de alterar o modelo econômico do país pode esbarrar na falta de parlamentares para aprovar as ambiciosas reformas.

O novo presidente chega com um pacote de leis que antes de darem certo vão provocar recessão combinada com elevada inflação. Os movimentos sociais e sindicais prometem resistir e já organizam protestos. Líderes da direita regional e mundial, reunidos em Buenos Aires, pegam carona na popularidade do argentino.

A posse terá um forte apelo popular e demonstrações de vínculos internacionais como sinais de capital político para amenizar a fragilidade parlamentar do novo governo. Javier Milei vai assumir no domingo e, logo na segunda-feira (11), pretende enviar ao Congresso um amplo pacote de leis para uma reforma do Estado, da economia e da política do país.

As medidas terão como foco reduzir o tamanho do Estado para atingir o equilíbrio fiscal. Serão eliminados ministérios, organismos estatais e centenas regulações burocráticas. Também devem ser anunciadas mudanças no regime econômico em matéria de câmbio, de comércio e de investimentos.

"A sociedade argentina vive um estado de efervescência, devido à expectativa com o novo governo, mas estamos na tensa calma que antecede uma tempestade. Há muita incerteza sobre como o novo presidente terá a governabilidade do país", indica à RFI o analista político Gustavo Marangoni.

Javier Milei anunciou que vai quebrar a tradição de dirigir o seu discurso de posse à Assembleia Legislativa. Em vez disso, vai sair do Congresso, mas, ainda na escadaria, fará um discurso com o roteiro do seu governo de frente para o povo, tendo o Parlamento ao fundo.

A simbologia dessa decisão é dar as costas ao Congresso, onde Milei tem uma absoluta minoria, e mostrar aos legisladores que tem o mandato popular para tocar as reformas. Para isso, Milei convocou a população a lotar a praça do Congresso com bandeiras argentinas. O modelo está inspirado no discurso de posse dos presidentes norte-americanos em frente ao Capitólio.

"Ao preferir um discurso dirigido à multidão do lado de fora e não aos legisladores do lado de dentro, Milei traça uma aliança com os seus eleitores, onde está o seu verdadeiro capital político, e marca com a 'casta política' a quem derrotou nas urnas, prometendo ajuste e reformas. É uma forma de pressionar o Congresso a aprovar as primeiras leis", explica à RFI o analista político Patricio Giusto, diretor da consultora Diagnóstico Político.

Muitos votos e poucos legisladores

A mudança de rumo da economia que Milei promete requer muitas alterações na legislação, mas o novo presidente, eleito com 55,7% dos votos, tem pouca representatividade.

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Isso acontece porque é um representante que vem de fora do sistema político. Mas o que pode ser uma vantagem para não ceder aos interesses corporativos é também uma desvantagem para a governabilidade. Dos 257 deputados, Milei tem apoio de apenas 38, um número distante do quórum de 129 que necessita. No Senado, o panorama é ainda pior: dos 72 senadores, Milei possui somente sete cadeiras, sendo que precisaria de 37.

O apoio do ex-presidente Mauricio Macri lhe permite somar cerca de 50 deputados e 13 senadores, mas ainda é insuficiente. Milei vai precisar de parte do Peronismo, principal força opositora ao novo governo, mas fragmentada depois da dura derrota nas urnas.

"Javier Milei caminha por um desfiladeiro muito estreito. Não terá margem nem de tempo, nem de erro. Precisará de muita habilidade política, mas nem ele, nem a sua equipe têm experiência na função pública. O desafio é complicado. Em poucos meses, o capital político do novo presidente pode deteriorar-se", adverte Marangoni.

"Como conseguirá cooptar vontades para aprovar as medidas necessárias? Por que a oposição colaboraria se Milei vai tomar decisões de corte no emprego público? Por que os governadores vão ordenar que os seus legisladores apoiem medidas se vão ficar sem obras públicas?", questiona Marangoni.

Corte drástico no gasto público

Desde que ganhou as eleições presidenciais em 19 de novembro, Javier Milei repete como um mantra a frase: "O dinheiro acabou". O presidente eleito promete chegar a déficit zero em um ano, acabando com os 5% do PIB de déficit fiscal por parte do Tesouro, além de outros 10% de déficit por parte do Banco Central.

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O presidente garante que os privados não serão afetados e que todo o ajuste será no Estado, mas poucos acreditam nisso porque boa parte do atual déficit vem de subsídios às tarifas de serviços (luz, água e gás), aos combustíveis, aos transportes públicos, com preços praticamente congelados, apesar da inflação acumulada de 143% nos últimos 12 meses.

Segundo Milei, a drástica redução do gasto público é a única saída para um país sem acesso ao crédito. O corte inclui as obras públicas, exceto se tiverem financiamento externo. "É isso ou vamos à hiperinflação", adverte ele ao alertar sobre uma prevista recessão combinada com aumento da inflação.

"A economia argentina ainda vai piorar antes de melhorar. E haverá tensão nas ruas porque os setores prejudicados pelos cortes no gasto público terão incentivos para protestar", prevê Gustavo Marangoni.

"Milei diz que a política vai pagar o ajuste, mas sabemos que, mais cedo ou mais tarde, tudo estará mais caro. A redução de cargos políticos, de ministérios e organismos não pesa no déficit, mas é uma valiosa mensagem para a população sentir que o Governo acompanha o esforço social", interpreta Patricio Giusto.

Paciência e resistência

Quanto uma sociedade sob forte ajuste pode resistir? Qual será o nível de tolerância para meses de uma inflação que pode superar os 20% mensais? Essas são as perguntas que todos os analistas fazem. As respostas variam entre seis meses e um ano.

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"Milei sabe que a paciência de hoje pode ser retirada se ele não conseguir estabilizar a economia. Se depois de um ano, a inflação não estiver controlada, o seu eleitorado lhe retirará o apoio. Se a mudança política não trouxer mudança econômica, o governo estará bem complicado", adverte a analista política Camila Rodríguez Nardi, da Poliarquia Consultores.

Desde que Milei foi eleito, fornecedores e comerciantes têm reajustado preços entre 30% e 50%, antecipando-se ao que vem pela frente. E, mesmo assim, os supermercados estão abarrotados de pessoas que compram tudo o que podem, prevendo que a moeda argentina será desvalorizada logo na segunda-feira (11) e que os preços poderão subir ainda mais.

Os movimentos sociais e sindicais, todos ligados ao Peronismo, já avisaram que vão protestar se Javier Milei tentar avançar com uma reforma trabalhista ou mesmo com privatizações. Já há duas manifestações marcadas para os próximos 19 e 20 de dezembro.

"Javier Milei tem a favor uma opinião pública cansada de tantos danos provocados pelos anos de governos peronistas, mas essa opinião pública é volúvel. Com o mesmo entusiasmo que agora o apoia, pode deixar de apoiá-lo se as altas expectativas não forem atendidas. Esses jovens carecem de organização, enquanto os sindicatos, os movimentos sociais e os partidos políticos, todos opositores, têm organização, recursos e líderes permanentes", compara Gustavo Marangoni.

Apoio internacional

Os presidentes presentes em Buenos Aires para a posse de Milei são, na sua grande maioria, de direita. Da América Latina, Paraguai, Uruguai e Equador. O presidente de El Salvador, Nayib Bukele, não deve vir porque pediu licença do cargo, mas é um aliado de Milei.

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Da Europa, o primeiro-ministro da Hungria e presidente da Armênia. Outros líderes da direita aqui presentes são Santiago Abascal, do partido de extrema-direita espanhol VOX, o líder da extrema-direita chilena, José Antonio Kast, e o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro, que chegou na capital argentina na noite de quinta-feira (7), sinalizando um possível apoio para as eleições presidenciais no Brasil em 2027.

"Espero do governo Milei um bom relacionamento com o Brasil", disse Bolsonaro, que ao apontar para si mesmo, completou "a partir de 2027".

O ex-presidente Donald Trump, também aliado de Milei, disse que viria a Buenos Aires em outra ocasião. O mesmo que o empresário Elon Musk. Os únicos presidentes de esquerda serão o boliviano, Luis Arce, e o chileno, Gabriel Boric. Brasil, Estados Unidos, Israel, Colômbia, Peru e o Vaticano enviam representantes de alto nível.

A presença mais chamativa, no entanto, será a do presidente da Ucrânia Volodymyr Zelensky. Esta é a primeira vez que Zelensky viaja à América Latina. Javier Milei se comprometeu com Zelensky a organizar uma reunião de cúpula em Buenos Aires com países da região que apoiem Kiev na resistência contra Vladimir Putin.

Não foram convidados os líderes de regimes autoritários como Venezuela, Cuba, Nicarágua e Irã. A Nicarágua, aliás, retirou o seu embaixador da Argentina. A política externa de Javier Milei será de alinhamento com os EUA, com Israel, com a Europa e com os países latino-americanos democráticos, onde não governam líderes da esquerda como Brasil e Colômbia.

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