Opinião: fragmentação da Rússia é vista pelo Kremlin como crescente ameaça
Michael Khodarkovsky
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AFP
O líder checheno Ramzan Kadyrov (dir.) cumprimenta veteranos da 2ª Guerra Mundial durante evento que celebra o Dia da Vitória em Grozny, capital da Chechênia, em 9 de maio
Durante aqueles dias tensos do início de março, quando Vladimir Putin desapareceu de vista, o presidente russo emitiu apenas uma única declaração presidencial: ele instruiu seu primeiro-ministro a preparar o plano para uma nova agência federal, que trabalharia para "consolidação da unidade da nação multiétnica da Federação Russa".
A medida passou relativamente desapercebida, mas levanta questões provocativas. Por que criar de repente uma nova divisão do governo, quando os fundos para outros departamentos estão sendo congelados ou cortados? E por que a escolha para liderar a agência recaiu sobre Igor Barinov, um membro do Parlamento e coronel reformado do Serviço Federal de Segurança, com experiência em operações especiais na Chechênia e contraterrorismo?
Para o Kremlin de Putin, a diversidade religiosa e étnica continua sendo uma preocupação de segurança. A nova agência federal está encarregada de resolver um dos maiores desafios da era Putin: como moldar uma Rússia unificada a partir de uma população tão diversa, enquanto Putin busca sua ambição neoimperial de recuperar grande parte da velha União Soviética?
Um motivo possível para escolha de Barinov é a repercussão do assassinato do líder de oposição russo, Boris Nemtsov, em 27 de fevereiro. Muitas pessoas suspeitam que o líder tchetcheno, Ramzan Kadyrov, que acredita-se estar por trás de outros assassinatos, encomendou o crime como demonstração de lealdade a Putin. Se o fez, ele pode ter ido longe demais. Putin, que tem contado com Kadyrov para manter sua região rebelde sob controle, pode agora considerá-lo imprevisível. Barinov pode ser a melhor opção para mantê-lo sob controle.
É mais provável, entretanto, que a nova agência tenha nascido da crescente percepção de que o país é bem menos unido do que o nome do partido de Putin, Rússia Unida, sugere. A fragmentação da Rússia, com suas múltiplas identidades étnicas, regionais e religiosas, é vista pelo Kremlin como uma crescente ameaça.
Tendências demográficas alimentam essas preocupações. Na atual Federação Russa, 78% das pessoas são de etnia russa e as demais abrangem mais de 190 minorias, a maioria delas ávida por preservar suas identidades distintas e a integridade territorial de suas repúblicas autônomas e distritos. Os esforços de Moscou para encorajar uma maior natalidade entre os russos étnicos tiveram pouco resultado. Até a metade do século, a projeção é de que a população da Rússia cairá dos atuais 142 milhões para 120 milhões, uma queda acentuada. Alguns estudos preveem que ela terá uma maioria muçulmana. Apesar dessa perspectiva parecer distante, ela está no centro das políticas de Moscou e da identidade da Rússia.
A questão da identidade nacional preocupa intelectuais e autoridades do governo desde o início do século 19. A Rússia é uma nação-Estado, um império colonial, uma união multinacional? E quem, exatamente, é russo?
O primeiro governo pós-soviético, sob Boris Yeltsin, tentou resolver essas questões delicadas ao reservar o termo "russo" (russkii) apenas aos russos étnicos, enquanto tanto não-russos e russos passaram a ser conhecidos como "rossiane", uma palavra que implicava em uma identidade nacional mais ampla para todos os cidadãos da Federação Russa.
Mas essa distinção significava pouco para a maioria das minorias. Yeltsin disse famosamente aos não-russos para pegarem "o máximo de autonomia que puderem engolir". E eles o fizeram, promovendo de modo veemente suas próprias línguas, história e cultura. Em alguns lugares, como a República do Tatarstão, os não-russos conseguiram um grau sem precedente de autonomia de Moscou de modo pacífico, enquanto na Chechênia a busca pela independência levou a duas guerras.
Putin reverteu a política de Yeltsin e reduziu a autonomia dos distritos e repúblicas não-russas. A censura e a autocensura voltaram. Histórias regionais, que nos anos 90 enfatizavam a brutalidade da conquista russa, voltaram à velha mistificação soviética de submissão "voluntária" ao governo benigno de Moscou. O Kremlin financiou generosamente celebrações marcando a suposta amizade de séculos entre o povo russo e os vários não-russos.
Mas a propaganda não fará os problemas desaparecerem. Entre os não-russos da federação, os muçulmanos são o maior grupo, aproximadamente 17% do total da população. Eles representam um desafio formidável ao Kremlin de vários modos.
A região mais rebelde e violenta é o norte do Cáucaso, onde populações muçulmanas residem em enclaves étnicos e estão mal integradas ao país, apesar de serem totalmente dependentes de subsídios financeiros de Moscou. De muitos modos, a Chechênia é praticamente uma república islâmica independente, onde a lei Shariah predomina. Algumas repúblicas vizinhas apenas parecem pertencer à estrutura federal.
Moscou exerce um controle ligeiramente melhor sobre a região central do Volga, onde uma grande população muçulmana também está exibindo sinais de descontentamento. Desde a anexação russa da Crimeia em 2014, cerca de 300 mil tártaros crimeios agora fazem parte dos muçulmanos da Rússia. Mas eles permanecem ferrenhamente leais à Ucrânia e resistem em aceitar passaportes russos. Moscou está perseguindo seus líderes, mas está ciente de que contam com a solidariedade de outros muçulmanos russos.
Enquanto isso, o maior desafio está dentro de Moscou, onde residem mais de dois milhões de muçulmanos, a maioria trabalhadores migrantes. Pode ser o segredo mais bem guardado da Rússia o fato de Moscou ser a cidade com maior população muçulmana na Europa. Relegados à periferia de Moscou e sofrendo de escassez crônica de mesquitas, os muçulmanos da cidade há anos são vítimas de estereótipos e violência. Com o declínio da economia, também diminui a paciência russa com os grandes subsídios do Kremlin às regiões não-russas, e a tolerância com a população "estrangeira" na capital.
Várias ideias geopolíticas justificando o ultranacionalismo se fundiram para formar a espinha dorsal da ideologia chauvinista do Kremlin. Uma é o "Eurasianismo", que coloca a Rússia em oposição à Europa e justifica as reivindicações de Moscou às antigas partes dos impérios russo e soviético em ambos os continentes. Outro conceito, conhecido como "o Mundo Russo", afirma a preocupação e autoridade de Moscou com as populações de língua russa, independente de sua nacionalidade. Os defensores de ambas as teorias apoiam a expansão nos antigos territórios soviéticos.
No final do ano passado, a Igreja Ortodoxa Russa declarou oficialmente que apenas membros da Igreja podem ser considerados russos e que o mundo russo é uma civilização distinta, baseada na Rússia Sagrada –-Rússia, Ucrânia e Belarus. Putin agora declara que russos e ucranianos são um só povo.
Logo, o que é a Rússia hoje? Os atuais ocupantes do Kremlin encontraram sua própria resposta cínica: é uma autocracia tradicional em trajes democráticos, uma promotora do nacionalismo étnico virulento sob o disfarce de restauração da dignidade russa, e um expansionismo descaradamente à moda antiga formulado como uma defesa contra ameaças externas forjadas.
Tradutor: George El Khouri Andolfato