Opinião: Brasil tornou-se um ator mortífero na indústria de armas global
Robert Muggah e Nathan B. Thompson*
No Rio de Janeiro
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Getty Images/iStockphoto
Enquanto o Brasil sofre a pior crise política e econômica de que se tem memória, os brasileiros quase não podem ser culpados por estar distraídos. Mas há um tema que seus políticos --e cidadãos-- não estão discutindo, embora apresente o risco de manchar a reputação internacional do Brasil como defensor da paz e da diplomacia: a indústria de armas irrestrita e seu envolvimento em conflitos internacionais em todo o mundo.
As impressões digitais das maiores companhias de armas brasileiras estão aparecendo em um número crescente de lugares em atrito no mundo, incluindo o Iêmen, onde milhares de civis estão morrendo em uma guerra violenta, sem final à vista. Uma investigação no mês passado na indústria brasileira Forjas Taurus revelou que a companhia forneceu armas para um conhecido negociante iemenita. Dois ex-executivos da empresa --a maior da América Latina-- foram acusados de transferência ilegal de armas, embora o caso continue sob sigilo. A Taurus, que está envolvida só como parte interessada, negou qualquer erro e disse que está trabalhando para "esclarecer os fatos".
Os detalhes dos desvios da Taurus parecem uma novela de espionagem. Os promotores brasileiros afirmam que Fares Mohammed Hassan Mana'a, um muito conhecido traficante de armas e ex-governador no Iêmen, desviou uma remessa de 8.000 pistolas de Djibuti pelo estreito de Bab el-Mandeb até o Iêmen. Mana'a estaria apoiando rebeldes houthi em sua luta contra o governo apoiado pela Arábia Saudita e pelos EUA.
A guerra civil no Iêmen já matou cerca de 10.000 pessoas desde o início de 2015 e desalojou mais de 3 milhões. Os EUA, que forneceram apoio material e logístico à campanha de bombardeios saudita, estão sob intensa pressão para esclarecer seu envolvimento na guerra civil, devido ao custo humanitário e do papel cada vez mais direto dos americanos no conflito.
Os dois então executivos da Taurus foram acusados de negociar uma segunda venda de 11 mil armas em 2015, quando a Polícia Federal do Brasil interveio.
Não é a primeira vez que armas brasileiras aparecem no conflito iemenita. No final do ano passado, pesquisadores descobriram munição não explodida e bombas de fragmentos no Iêmen que teriam sido compradas da Avibras Indústria Aeroespacial, empresa sediada em São José dos Campos (SP) que fabrica foguetes de fragmentação e o sistema de lançamento múltiplo de foguetes Astros. Mais de cem países proibiram a fabricação, o estoque e o uso dessas armas, devido ao seu potencial de causar danos indiscriminados a populações civis e à infraestrutura. O Brasil não é um deles.
O Brasil habitualmente autoriza as vendas de armas a países com fracos históricos de direitos humanos. O país assinou grandes acordos não somente com a Arábia Saudita, mas também com Egito, Líbia, Irã, Iraque, Emirados Árabes Unidos, Zimbábue e dezenas de países em todo o Oriente Médio e a África desde os anos 1980. As empresas brasileiras também aumentaram as vendas de armas "não letais", como gás lacrimogêneo, spray de pimenta e granadas de concussão e fumaça. Algumas dessas surgiram no Bahrein, na Turquia e no Egito, muitas vezes depois de ações policiais sangrentas para esmagar demonstrações pró-democracia.
Muitos fabricantes de armas do Brasil têm sido fortemente subsidiados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Pedidos de abertura de informações revelaram que a Taurus recebeu empréstimos de US$ 16,7 milhões com baixas taxas de juros entre 2008 e 2015. Só em 2013, ano em que a Taurus teria vendido as 8.000 pistolas para Mana'a, a companhia se beneficiou de US$ 10 milhões em empréstimos do BNDES. A Companhia Brasileira de Cartuchos, uma das maiores produtoras mundiais de munição (e acionista majoritária da Taurus), recebeu US$ 2,9 milhões em empréstimos no mesmo período de oito anos. O setor de defesa brasileiro, com exceção da aeronáutica, recebeu US$ 70,5 milhões em empréstimos do BNDES de 2008 a 2015.
Um motivo pelo qual as exportações de armas brasileiras estão se expandindo em grande velocidade é que o Congresso Nacional aprovou uma lei que promove a inovação e a concorrência em um setor de defesa vacilante. A legislação também garante às companhias designadas importantes isenções fiscais. O Brasil é hoje o quarto maior fornecedor de pequenas armas e munição do mundo e o segundo no hemisfério ocidental, depois dos EUA.
O fato é que ninguém sabe realmente quantas armas o Brasil vende no mundo, seja para governos que violam os direitos humanos ou não. As políticas de exportação de armas do país são absurdamente opacas, carecendo da supervisão e dos mecanismos adequados para garantir que as pessoas que usam as armas respeitam a lei internacional. O Brasil fica perto da China e da Ucrânia no que se refere a reportar as transferências de armas às autoridades internacionais. Embora os diplomatas brasileiros possam suplicar para que seja diferente, há comparativamente menos verificações e balanços quando as armas deixam o país. Talvez isso não seja surpreendente, já que a política oficial de armas do Brasil ainda se baseia amplamente em decretos da era da ditadura militar, nos anos 1960 e 1970.
Para piorar a questão, o Brasil ainda não ratificou o Tratado de Comércio de Armas (ATT na sigla em inglês), assinado em 2013 por grande aclamação. O acordo, que é um marco mundial, proíbe os Estados de transferir armas convencionais --incluindo pistolas como a que a Taurus fabrica-- para Estados e intermediários que representa um alto risco de cometer crimes contra a humanidade. Ele também exige que os Estados analisem a probabilidade de as armas serem desviadas e causarem graves violações da lei humanitária, como teria ocorrido no caso de Mana'a. No final de agosto, o ATT passou em uma importante votação na Câmara dos Deputados do Brasil, mas a ratificação plena está sendo discutida na Comissão de Segurança Pública, dominada por um bloco parlamentar conservador conhecido como "bancada da bala".
O Brasil está cada vez mais isolado em sua posição sobre o ATT e as munições de fragmentação. Os EUA foram notícia recentemente quando o último fabricante americano de munição de fragmentação, Textron Systems, decidiu encerrar a produção. A Textron o fez depois de sofrer enorme pressão de organizações de direitos humanos e que a Casa Branca bloqueou um carregamento de suas armas para a Arábia Saudita. O Brasil deveria tomar nota.
O fracasso do país em ratificar o ATT está minando sua posição global como potência pacífica, cultivada durante quase 70 anos de participação nas missões de paz da ONU; negócios de armas suspeitos destoam cada vez mais da reputação duramente conquistada do Brasil de prevenir conflitos e promover a paz ao redor do mundo.
O Brasil precisa reformar de modo substancial sua abordagem ao controle de armas. Um bom lugar para começar seria a plena ratificação do ATT, o desenvolvimento de supervisão mais rigorosa e mecanismos de transparência durante o processo de licenciamento e exportação, e um programa rígido para garantir que as armas não acabem nas mãos erradas. As políticas do país estão perigosamente defasadas e fora de controle, gerando sofrimento real no país e no exterior.
* Robert Muggah é diretor de pesquisa do Instituto Igarapé, um grupo de pensadores independentes sediado no Rio de Janeiro, e Nathan B. Thompson é um pesquisador.
Além do atirador, fabricantes de armas também são culpados por um massacre?
Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
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