Josias de Souza

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Opinião

Vídeo assombra pela banalidade que revestiu a reunião do golpe

Nada foi mais assombroso na reunião de 5 de julho de 2022 do que a normalidade que revestiu o debate sobre o golpe. Escândalos costumam brotar de acontecimentos que provocam espanto, ferindo a rotina como uma lâmina afiada. Na conversa do Palácio do Planalto, o que feriu foi a normalidade. Bolsonaro expôs ao ministério sua estratégia para subverter o resultado das urnas. E o absurdo foi recebido pelo primeiro escalão do governo com uma doce, persuasiva, admirável naturalidade.

Todos os brasileiros deveriam reservar um naco do recesso carnavalesco para assistir ao vídeo, que está disponível acima. Sugere-se ao espectador um exercício singelo: percorrer a filmagem abstraindo as declarações antidemocráticas de Bolsonaro e os flertes dos seus auxiliares mais notáveis com a ilegalidade.

Ignorem-se as vulgaridades do capitão, ou o strip-tease moral dos generais Augusto Heleno (GSI), Paulo Sérgio Nogueira (Defesa) e Mário Fernandes (número 2 da Secretaria-Geral da Presidência), ou o apagão ético de Anderson Torres (Justiça) e Wagner Rosário (CGU). Fixe-se a atenção no que acontece entre uma barbaridade e outra. Estava sobre a mesa o golpe. E nenhum dos presentes esboçou surpresa.

Se o encontro ministerial fosse um banquete e Bolsonaro servisse uma ratazana ensopada, nenhum dos ministros faria a concessão de um ponto de exclamação. O cardápio é golpe? Pois que seja antes da abertura das urnas, sugeriu o general Heleno. "Se tiver que virar a mesa, é antes das eleições". Ninguém se opôs.

O alvo é o TSE? Pois convém intensificar a "guerra", movimentando as Forças Armadas da "linha de contato" para o início da "operação" de contestação às urnas, sugeriu o general Paulo Sérgio. Nenhuma contestação.

O objetivo é deter Lula? Pois "a gente precisa atuar agora", insuflou Anderson Torres, "porque todos vamos se foder (sic)". Nem sinal de objeção.

Há o risco de repetir 64? "É muito melhor assumir um pequeno risco de conturbar o país, para que aconteça antes, do que assumir um risco muito maior da conturbação no 'the day after', deu de ombros o general Mário Fernandes. De novo, não se ouviu uma reles contradita.

"O TCU já soltou o relatório dizendo que as urnas são seguras", avisou Wagner Rosário, levantando a bola para Bolsonaro cortar a cabeça de Bruno Dantas, autor do documento: "Olhem pra minha cara, por favor. Todo mundo olhou pra minha cara? Acho que não tem bobo aqui."

A atmosfera de normalidade que permeou o encontro instilou nas cenas uma impressão perturbadora: se Bolsonaro mandasse servir o ensopado de ratazana entre uma aberração retórica e outra, alguém talvez erguesse a voz: "Capricha na pimenta!".

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No limite, o ambiente capturado pelo vídeo do Planalto evoca uma expressão cunhada pela filósofa alemã Hannah Arendet. Ao analisar a história do criminoso nazista Adolf Eichmann, ela enxergou no comportamento do personagem traços de uma "banalidade do mal".

Assim como os auxiliares de Bolsonaro, Eichmann era tido como bom funcionário, um exemplar cumpridor de ordens. Durante o seu julgamento, em Jerusalém, Eichmann contou que, quando os chefes da SS, a polícia nazista, foram convocados para planejar a implementação da "solução final" —a execução dos judeus— realizaram uma reunião de trabalho de uma hora e meia.

Ao final do fatídico encontro, disse Eichmann no banco dos réus, foram servidos aperitivos e um almoço. Nas palavras do servidor de mostruário do regime nazista, foi "uma pequena e íntima reunião social". Nada mais normal.

O pedaço do encontro do Planalto captado pela filmagem durou uma hora e 33 minutos. Paulo Guedes, o Posto Ipiranga, entrou mudo e saiu calado. Suponha-se que, ao retornar ao Ministério da Economia, um assessor lhe perguntasse: "Como foi a reunião?" Guedes talvez respondesse: "Nada de novo".

Não seria despropositado supor que Marcelo Queiroga, então ministro da Saúde, tenha engolido um antiácido, para evitar os efeitos gástricos dos cafezinhos que sorveu enquanto silenciou para o absurdo. Ou que Joaquim Álvaro Pereira Leite, então titular do Meio Ambiente, tenha retornado impassível à pasta do Meio Ambiente após testemunhar as tramoias palacianas para subverter o ambiente inteiro. Ou que José Carlos Oliveira (Trabalho), tenha parado numa padaria para se abastecer pão e leite antes de se entregar ao repouso doméstico. Ou...

Nenhum espelho reflete melhor a imagem de um homem do que as suas palavras. Durante a reunião ministerial do golpe, houve dois momentos em que os oradores pressentiram que não conspiravam apenas contra a democracia, mas contra a própria autoimagem.

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O general Paulo Sérgio, titular da Defesa, disse a alturas tantas considerar conveniente que "os comentários fiquem entre a gente". Wagner Rosário, o chefe da Controladoria, teve a ilusão de que poderia fugir ao controle social impunemente: "A reunião está sendo gravada?", indagou.

O general Braga Netto acenou negativamente com o dedo. Bolsonaro assegurou a Rosário que mandara gravar apenas sua exposição inicial. Graças a uma cilada do destino, o delator Mauro Cid guardou no seu computador a íntegra das imagens. Capturada pela Polícia Federal, a peça foi jogada no ventilador por Alexandre de Moraes.

Presenteado com a possibilidade de comprovar a normalidade que permeou o ocaso de Bolsonaro, o brasileiro é empurrado, por assim dizer, para a conclusão de que algo de muito anormal precisa ocorrer para restabelecer a sanidade nacional. A imposição de um lote de sentenças criminais que interrompam o ciclo de impunidade de Bolsonaro e dos seus cúmplices seria um bom começo.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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