No meio da serra fluminense, o grito dos sobreviventes ainda reverbera, um ano depois: "não está tudo bem"
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“Vem cá, moça. A gente precisa falar o que tá acontecendo aqui: não tá tudo bem”.
A frase foi o primeiro contato da reportagem do UOL com moradores da região serrana do Rio, no início deste mês, na viagem de quatro dias pelos municípios mais afetados pela enchente e pelos deslizamentos do fatídico 12 de janeiro de 2011. A partir da capital, a equipe seguiu para Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo --em ordem crescente, onde foi registrada a maioria das quase 1.000 mortes consideradas pelas estatísticas oficiais.
A autora é uma comerciante de Petrópolis --ou melhor: “do distrito de Itaipava” (como tantas vezes a administração local fez questão de ‘corrigir’, nos primeiros dias após a tragédia, a pretexto de o turismo ‘em Petrópolis’ não ser afetado). Dos 74 mortos registrados no município, todos eram do distrito. Todos, de um vilarejo rural conhecido como vale do Cuiabá e do qual pouco sobrou.
O curioso é que, uma palavra mudada aqui, outra ali, com um tom de revolta mais ou menos acentuado, isso seria ouvido até o último dia de jornada da equipe. Mais que “moradores” da região serrana, as pessoas fazem questão de se apresentar como “sobreviventes” daquele que ficou marcado como o pior desastre natural da história do Brasil.
E se revoltam: 12 meses depois, não bastasse muito pouco ter sido recuperado, tentar esquecer os momentos de maior desespero é uma luta diária tão árdua quanto recuperar o bem material que se perdeu. Afinal, os escombros e a infraestrutura urbana destruída estão ali tão presentes quanto as encostas que ainda exibem, ameaçadoras, as marcas da destruição.
“As crianças crescem com essas imagens aí na cabeça”, lamenta seo Sebastião, comerciante em Teresópolis. Não só elas, seo Sebastião.
Os esqueletos da destruição e as placas oficiosas
Nas três cidades, as localidades mais afetadas pelos deslizamentos guardam entre si a semelhança de ainda portarem muitos esqueletos do que restou de casas, hotéis, pousadas e bares.
Guardam também a riqueza de detalhes com que cada sobrevivente lembra do próprio apuro na madrugada do dia 12 de janeiro e do destino de parentes e amigos mortos ou salvos em galhos de árvores. E uma queixa comum: segundo uma gama variada de entrevistados, administrador público pouco ou nada é visto nesses pontos, ainda que o talonário do IPTU (Imposto Predial Territorial Urbano), em alguns bairros, tenha vindo em 2012 com reajustes consideráveis.
Em Teresópolis, uma situação curiosa: a contar pelas volumosas placas anunciando investimentos, a recuperação da cidade vai de vento em popa. Lama no que era um importante ponto turístico como a Cascata do Imbuí e pichações de “corrupto” em algumas dessas mesmas placas contradizem a propaganda oficial da recuperação a olhos vistos.
A sabedoria popular do "enxuga-gelo" e as flores do caminho
Gíria para ineficiência, a expressão “enxugar gelo” é outra a que os sobreviventes das três cidades recorrem para avaliar as poucas obras em andamento. Não é difícil compreender o sentido: montes de areia na beira de um rio que precisa ser desassoreado, aprende uma criança na aula de Ciências, é facilmente transportável para o mesmo rio pela ação do tempo.
Casas à beira de encostas nuas, se aprende com a experiência do fato vivido, são risco iminente e chance fácil para o azar. Estradas inacessíveis a quem delas depende para escoar a produção, ensina o homem do campo, é falta de comida na mesa --ou uma incômoda dependência da boa vontade de quem assume o papel do Estado em ação voluntária, mas de alcance limitado.
O “não tá tudo bem” de dona Sandra, comerciante em Petrópolis --pois é para a prefeitura de lá que ela paga impostos, não Itaipava--, tem um corpo definido para a equipe ao fim da viagem. Seja pelo que se ouve, seja pelo que se vê.
Mas algumas flores que insistem em surgir em meio a rochas imensas que rolaram sobre o bairro de Campo Grande, em Teresópolis, ajudam a apontar algum caminho de mudança: seja pela artista plástica que recolheu dezenas de cães da enchente, seja por dona Maria, de Nova Friburgo, que mostra a casinha sendo refeita cômodo por cômodo ao lado de duas vira-latas que recolheu dos escombros, seja pelos jipeiros que deixam o conforto do fim de semana no Rio para levar água e comida a isolados na zona rural --isolados um ano depois.
São os exemplos pontuais, ainda que singelos, que ajudam a afastar algumas nuvens pesadas da serra fluminense. E a prontidão de um "a resposta será dada nas urnas”, como a reportagem ouviu nas três cidades neste 2012 de eleições municipais, é a que talvez, lá adiante, explique ao comerciante do devastado Vale do Cuiabá a dúvida expressada sob um sol forte das duas da tarde: “será possível que todo ano vai ser a mesma tragédia?”
Em tempo: a qualidade da reconstrução do que foi destruído e do recomeço de uma nova etapa de desenvolvimento dependem também da resposta que a Justiça dará aos desvios de dinheiro público constatados nos últimos 12 meses por órgãos como MPF (Ministério Público Federal) e MPE (Ministério Público Estadual), além de CGU (Controladoria Geral da União).
Como simples e sabiamente definiriam os sobreviventes, chega de enxugar gelo.
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