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Júri do Carandiru terá Fleury e sobreviventes de massacre como testemunhas

Janaina Garcia

Do UOL, em São Paulo

08/04/2013 06h00Atualizada em 08/04/2013 15h21

Sobreviventes do massacre do Carandiru, 26 policiais militares da ativa e aposentados e autoridades públicas do Estado à época, como o ex-governador Luiz Antonio Fleury Filho, devem começar a reconstruir, a partir de segunda-feira (15), perante o júri, mais de 20 anos depois, as versões de que os crimes foram praticados sem chance de defesa às vítimas, como sustenta a acusação, ou em cumprimento a ordens de superiores, como alega a defesa.

A assessoria de imprensa do TJ-SP (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo) informou que 24 réus comparecerão ao Fórum Criminal da Barra Funda (zona oeste de SP). A identidade dos ausentes não foi informada, tampouco o motivo das ausências --como são réus soltos, os PMs não são obrigados a comparecer ao próprio julgamento.

Para evitar a imprensa, os 24 réus entrarão pela porta dos fundos do fórum.

Além do perito da época, Oswaldo Negrini, oito sobreviventes do massacre estão entre as 13 testemunhas convocadas pela acusação.

Entre as dez testemunhas convocadas pela defesa estão Fleury e o ex-secretário de segurança pública, três desembargadores, dois coronéis da PM e um dos ex-diretores do presídio.

O episódio, classificado pela OEA (Organização dos Estados Americanos) em 2000 como massacre, aconteceu na extinta casa de detenção do Estado em 2 de outubro de 1992. Ao todo, 111 presos morreram e 87 ficaram feridos. O saldo final não teve PMs mortos, mas 22 homens da corporação se feriram.

O  julgamento foi dividido em quatro partes pelo juiz do Fórum de Santana (zona norte de SP), José Augusto Nardy Marzagão, designado para o caso, a fim de que os jurados possam analisar o fato conforme a ordem de entrada dos PMs nos pavimentos em que as mortes ocorreram. Assim, os 26 réus de agora respondem por homicídio qualificado por 15 assassinatos no segundo pavimento do pavilhão, equivalente ao térreo.

A previsão é que essa etapa do julgamento dure duas semanas.

“Vamos respeitar a ordem colocada pela acusação, delineando as condutas dos réus, até para não confundir os jurados”, disse o juiz.


Após a sentença, Marzagão –que em setembro de 2012 designou a data do júri –deve definir a data do próximo júri: dessa vez, o de 28 PMs, da Rota --tropa de elite da PM paulistana--, acusados pela morte de 73 presos do terceiro pavimento. O magistrado disse que espera julgar o caso todo até o final deste ano.

De todas a acusações, 86, de lesão corporal leve, já prescreveram. As de homicídio prescrevem em 2020.

Perícia prejudicada

O júri estava marcado para janeiro deste ano, mas foi adiado após pedido da defesa e da acusação para que a pericia de confronto balístico fosse refeita. Mês passado, o Instituto de Criminalística enviou ofício ao Judiciário informando que nova perícia seria inviável por razões técnicas.

De 28 projéteis para laudo, por exemplo, apenas três, segundo o IC, estão em condições de análise em função das mais de duas décadas decorridas. Dos 350 revólveres, 250 estão sem condições, e, no restante, ela não seria conclusiva.

Para o Ministério Público, no entanto, a impossibilidade técnica de se individualizar qual policial matou qual preso não deve dificultar os trabalhos da acusação.

“A imputação feita aos acusados nunca foi a de conduta individualizada, nem precisa, quando se fala em uma situação de concurso de pessoas para a prática de crime. O confronto balístico nunca foi imprescindível, nessa linha”, disse um dos promotores do caso, Márcio Friggi.

“O importante é que não se trata de um julgamento da PM do Estado de São Paulo; não é a instituição, que sempre foi nossa parceira, sentada no banco dos réus: falamos de policiais e ex-policiais que violaram a lei, e, por isso, estão sendo julgados”, completou o promotor titular, Fernando Pereira da Silva.

“Muita gente na sociedade ainda entende que bandido bom é bandido morto. De nada adianta vai adiantar todo um conjunto probatório se os jurados julgarem com base nessa linha”, disse Friggi, nessa sexta (5), na entrevista coletiva em que o MP falou sobre os preparativos para o julgamento.

Defesa

Ao contrário dos promotores, a advogada de todos os réus, Ieda Ribeiro de Souza, acredita que a falta de provas que individualizem a conduta dos réus prejudica a acusação.

“Esperamos que os jurados analisem provas. Porque é muito fácil atribuir esse caso à PM, mas não tem nada que diga que o policial X matou a vítima Y. Precisamos de isenção de ânimo dos jurados”, declarou.

A advogada sugeriu que nem todos os 26 deverão ser ouvidos pela defesa, possibilidade que a lei coloca, “a fim de abreviar o sofrimento do jurado”.

Testemunhas

Entre as 13 testemunhas arroladas pela acusação, estão ex-internos do Carandiru e o perito responsável pelo laudo do local do massacre, Oswaldo Negrini, hoje aposentado.

Pela defesa, foram arroladas dez testemunhas –entre elas o ex-governador Fleury e o secretário de segurança pública do Estado à época, Pedro Franco, além de juízes de varas criminais e desembargadores.

As testemunhas não são obrigadas a comparecer. Semana passada, por exemplo, a advogada dos PMs disse que Fleury não havia confirmado presença.

“Vai ser a oportunidade de ele dar algumas explicações, é interessante que vá. Por exemplo, pode dizer como foi dada a ordem para a invasão das tropas, onde ele estava naquele momento, por que a informação dos mortos só divulgada dia 3, dia de eleições municipais, já perto do encerramento da votação”, declarou a advogada.

O UOL falou com o ex-governador, por telefone, mas ele não quis comentar o caso. “Tudo o que eu tinha de falar sobre o Carandiru falei nos últimos 20 anos. Não tenho mais nada a acrescentar”, encerrou.

"Verdadeiro responsável nunca vai ser identificado", diz Drauzio Varella

Para o médico e escritor Drauzio Varella, integrante da equipe médica do presídio à época, o julgamento não ajudará a fazer Justiça. Além disso, para o médico, o massacre foi um marco na história do sistema penitenciário do Estado, ao promover mudanças de gestão, mas não ajudou a recuperar os presos para a sociedade.

“Os principais implicados nessa história toda estão fora de qualquer tipo de punição. Estão livres. Pergunto: quem é o culpado? Quem foi que disse: ‘Invada’? Afirmar que o coronel [Ubiratan] tomou essa decisão por conta própria é abusar da inteligência da gente”, afirmou o médico, que, sem citar nomes, concluiu: O coronel recebeu ordem de alguém, esse é o verdadeiro responsável e, infelizmente, nunca vai ser identificado. Nem tem mais como se fazer justiça –será que se esses policiais vão levar a culpa por toda essa tragédia engendrada lá atrás por alguém que se escondeu no anonimato?”, indagou.

Comandante da operação, o coronel da reserva Ubiratan foi assassinado em 2006. Chegou a ser condenado pelo Tribunal do Júri a 623 anos pelas 111 mortes, mas o Tribunal de Justiça o livrou da condenação –da qual sempre recorreu em liberdade –em 2006, meses antes de ele ser encontrado morto em seu apartamento, nos Jardins, área nobre de São Paulo.

O coronel é um dos cinco policiais que já morreram no curso dos últimos 20 anos e seis meses. Ao todo, eram 84 os acusados.