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Refugiados palestinos escapam da guerra síria e enfrentam novo exílio no Líbano

Marcel Vincenti

Do UOL, em Chatila (Líbano)

04/08/2015 06h00

No começo de 2012, Mona Atur juntou seu marido e cinco filhos, empacotou suas coisas e saiu correndo de casa.

Naquele momento, bombas explodiam e tiros voavam sobre sua cidade, Deraa, um dos locais mais afetados pela guerra na Síria.

Com a certeza de que iria morrer se ficasse, Mona começava ali o terceiro exílio de sua história.

Quando criança, ouvia sua avó palestina lamentar a perda de sua casa durante a fundação de Israel, em 1948: “ela morava em Safed [hoje norte do território israelense] e soldados de Israel lhe disseram que, se não fosse embora, todos seriam mortos. Ela agarrou minha mãe, pequena na época, e escapou para o Líbano, deixando tudo para trás”.

Mona nasceu em 1970 em Tel al-Zaatar, um campo de refugiados em Beirute onde, em 1976, durante a Guerra Civil Libanesa, pelo menos 1.500 palestinos foram assassinados por milícias cristãs.

Após o massacre, era sua mãe quem a pegava no colo e corria para salvar a vida de todos. Seu destino foi Deraa, local que faria Mona fugir novamente quase quatro décadas depois, agora para preservar a existência de seus próprios filhos.

A história de desterro sem fim dessa mulher de 45 anos tem hoje uma nova parada: o campo de Chatila, localizado na miserável zona sul de Beirute, ocupado por refugiados palestinos desde 1949 e cuja precária infraestrutura vem sofrendo uma enorme pressão com a chegada de famílias fugidas da guerra síria.

De acordo com a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA, na sigla em inglês), pelo menos 1.600 sírios palestinos se mudaram para Chatila nos últimos quatro anos, aumentando para quase 21 mil almas a população do campo (um local inicialmente projetado pela Cruz Vermelha para abrigar apenas 3.000 pessoas).

Tal caos demográfico é atualmente parte da vida da família de Mona (hoje com filhos entre oito e 18 anos): desde que chegaram a Chatila, eles vivem em um apartamento de três cômodos na rua principal do campo, uma via barulhenta marcada por milhares de fios elétricos se emaranhando entre os postes, fotos de membros da Jihad Islâmica mortos por Israel e um cheiro constante de esgoto.

Dentro da casa, móveis quebrados, paredes descascadas e janelas que dão para escadarias por onde passam, espiando, outros moradores do edifício. Tiros de AK-47, disparados para o ar a todo instante em Chatila, por conta de celebrações ou funerais, ecoam na sala da família.

“Nossa vida na Síria era boa”, diz ela, com um sorriso que não consegue disfarçar uma profunda tristeza. “Construímos uma casa espaçosa, meu marido trabalhava como motorista e tínhamos os mesmos direitos que os sírios. No Líbano, não temos nada”.

Mona conta que não pensa mais em voltar para a terra de sua avó. “A Palestina é um sonho impossível. Eu gostaria mesmo é de retornar para a Síria”. Ao entrar em contato recentemente com amigos que ficaram por lá, ela ficou sabendo: sua casa em Deraa foi destruída por uma bomba.

Vida sombria

Chatila é uma favela verticalizada, com prédios amontoados que ganham novos andares a cada aumento populacional no campo. Quem mora embaixo, na altura das estreitas vielas que separam os edifícios, jamais vê o sol. 

A água que sai das torneiras é salgada e, sob o úmido verão libanês, mulheres suam sob seus negros véus muçulmanos.

Onipresentes, crianças correm sem parar pelas ruelas fétidas da área. A cada quatro ou cinco pequenas lojas (que vendem frutas, DVDs piratas e roupas chinesas), surge uma foto de Yasser Arafat ou de algum jovem combatente que morreu pela chamada causa palestina.

Chatila é um lugar armado: palco de um massacre cometido em 1982 por milícias cristãs – e que teria contado com a ajuda de Israel – que matou pelo menos 800 pessoas, a área abriga um enorme estoque de fuzis.

Grupos paramilitares palestinos têm grande poder sobre o campo (que funciona quase que em estado autônomo ao governo libanês) e dizem que o arsenal é necessário para impedir que a história se repita.

Membro do grupo Fatah al-Intifada, Abu Yassir é um dos responsáveis pelas milícias de Chatila. “Nosso trabalho principal é manter a segurança e resolver conflitos aqui. O convívio entre os moradores do campo deve ser pacífico”, diz ele, para logo depois mostrar uma veia bélica contra Israel. “Mas também temos orgulho de Chatila ser berço de diversos combatentes e mártires na luta contra os sionistas”.

O convívio de Yassir e outros líderes de Chatila com os refugiados da guerra síria parece ser amistoso. Diversos dos recém-chegados participam de reuniões e eventos festivos envolvendo a “velha guarda” do campo.

Fora das fronteiras dessa caótica favela, porém, os direitos de muitos moradores de Chatila são mínimos.

Sem saída

A maioria dos refugiados palestinos e seus descendentes no Líbano (hoje quase 450 mil pessoas) não tem cidadania libanesa e está privada de diversos direitos, como utilizar serviços públicos e trabalhar em pelo menos 20 profissões. Legiões de palestinos podem apenas desempenhar serviços braçais em construção e agricultura no país (veja mais informações sobre esta questão no box abaixo).

Essas restrições, por sua vez, têm afetado dramaticamente os refugiados recém-chegados da Síria.

“Todos os palestinos têm dificuldade para encontrar emprego no Líbano, mas os palestinos que escaparam da Síria estão em uma situação ainda mais difícil”, avalia Zizette Darkazally, chefe do serviço de comunicação da UNRWA no Líbano: “Muitos dos moradores mais antigos de Chatila os veem como concorrentes para os poucos trabalhos disponíveis e, quando conseguem algum trabalho, as pessoas vindas da Síria, por sua vulnerabilidade extrema, são mais exploradas do que a média”.

É o caso de Ayad Afifi, 40 anos, que, em 2012, se mudou para Chatila após abandonar sua casa em Yarmouk, área de Damasco que foi tomada por insurgentes e sofreu pesados ataques do governo sírio.

Sentado no chão de uma escura casa de um cômodo ao lado de sua mulher e uma filha de sete anos, ele lamenta: “não temos como sair daqui. Estou há quase três anos vivendo de pequenos trabalhos dentro do campo, fazendo dinheiro apenas para pagar o aluguel desse lugar [que custa US$ 150]. Na Síria, eu era gráfico. Aqui, não temos direitos e não tenho como exercer minha profissão”.

Assim como Mona Atur, Ayad tem uma vida perseguida por histórias de exílio. Ele é neto de palestinos que fugiram de Israel para a Síria em 1948, mas não acredita mais em um retorno às suas raízes na Palestina.

Seu sonho atual é atravessar a úmida e suja viela que aparece depois de sua porta e pegar a estrada rumo a Damasco: “torço para que Bashar al-Assad vença a guerra e a Síria volte a ser o que era, para que possamos morar lá novamente. Mas acho que isso vai demorar muito para acontecer”.

Desde 2011, 4 milhões de sírios já fugiram para países vizinhos