História chilena retoma ao palácio de La Moneda 40 anos após golpe de Pinochet

Juan Jesús Aznárez

Pontualmente, todo 11 de setembro, a história regressa ao Palácio de La Moneda, em Santiago do Chile, onde Salvador Allende se suicidou há 40 anos com um fuzil presenteado por Fidel Castro. A aviação golpista e a traição demoliam o edifício da rua Morandé quando o presidente se sentou em um sofá do palácio, apoiou o cavanhaque sobre o cano da arma, apertou o gatilho e saltaram pelos ares o crânio de um homem decente e uma democracia revolucionária. Não era a primeira vez que os EUA promoviam na América Latina a derrocada de presidentes insubmissos: duas rebeliões militares animadas pela CIA derrubaram Jacobo Arbenz na Guatemala em 1954; Juan Bosch na República Dominicana em 1963; e, um ano depois, o brasileiro João Goulart.

Consumada a torpeza do general Augusto Pinochet e a deslealdade dos temerosos, às 11h50 daquele dia fatídico dois aviões abriram fogo contra La Moneda com foguetes que perfuraram os muros do edifício neoclássico e quebraram as paredes de salões e escritórios. Os gases lacrimogêneos asfixiavam meia centena de fiéis. Entre escombros e gritos, protegiam-se como podiam. Sem fornecimento elétrico nem esperanças, com o palácio em chamas, o presidente despediu-se dos colaboradores e amigos. Sua imolação não tinha sentido. Mas eram outras as intenções do generalato rebelde. "Temos que matá-los como ratos, que não fique rastro de nenhum deles, de Allende." A fúria criminosa do almirante Patricio Carvajal foi conhecida porque inadvertidamente o sistema de comunicação ficou aberto entre o posto de comando da sublevação e as unidades de assalto.

Aquela quartelada reuniu todos os ingredientes das tragédias gregas: traições, covardias, intrigas, assassinatos e morte, segundo o cardiologista Óscar Soto Guzmán, sobrevivente de La Moneda, médico pessoal do presidente e autor do livro "Allende en el recuerdo" [Allende na memória], que é publicado no 40º aniversário do golpe. Relata as reações de Allende diante dos acontecimentos que lhe couberam viver. Soto também teve de reagir. "Falo com minha mulher Alice e ela me diz: 'Anunciam pela rádio que vão bombardear o palácio'. É verdade, respondo-lhe. 'O que você vai fazer?' Ficarei aqui no palácio, disse. Alice se calou, mas entendi que compartilhava minha decisão. O golpe mudou sua vida. Salvou-se, mas no exílio do México, Cuba e Espanha, onde vive com sua família.

Em 11 de setembro de 1973, terminou a sangue e fogo o governo da UP (União Popular), uma coalizão de esquerdas que pretendeu construir, talvez com demasiada pressa, uma sociedade mais justa em um país profundamente injusto. O Chile era então uma nação parlamentar, mas de oligarquias poderosas, reacionárias, e multinacionais com direitos feudais: a americana ITT (International Telephone & Telegraph) era dona de 70% da telefonia chilena. O poder econômico e midiático e a cruzada internacional dos EUA contra o perigo comunista ficaram definitivamente irmanados com a aceleração das reformas da UP. A agrária provocou bolhas.
O historiador espanhol Mario Amorós, que publicou "Allende, la biografía" depois de 18 anos de pesquisas sobre sua figura e trajetória, afirma que "a via chilena para o socialismo" foi derrotada por uma série de causas: a estratégia da oposição de bloquear qualquer iniciativa governamental no Congresso, no qual tinha maioria absoluta, o fomento da crise econômica e do desabastecimento e a mobilização anticomunista das classes médias e de setores estudantis; inclusive da aristocracia operária. A agressão dos EUA e a derrota dos setores constitucionalistas das forças armadas completaram a pressão, segundo Amorós, cuja obra, escrita a partir da militância política do autor, ligado ao Partido Comunista Espanhol, é imprescindível.

Mas o presidente e seu governo deviam ter feito algo errado para que fosse possível tal coalizão de forças opositoras. Comovido por sua morte, o secretário do Partido Comunista Italiano (PCI), Enrico Berlinguer (1922-1984), chegou a uma lúcida conclusão: as transformações pretendidas por Salvador Allende, que havia ganhado as presidenciais de 1970 com 36,3% dos votos, eram de tal calado que uma maioria simples não era suficiente para aprová-las, nem sequer com o presidencialismo consagrado na Constituição de 1925. As mudanças exigiam maiorias parlamentares próximas de 70% e amplos consensos sociais. Essa equação, entretanto, era quase impossível no Chile das injustiças distributivas e da guerra fria entre EUA e URSS.

Quatro décadas depois, o golpe cívico castrense de 2002 na Venezuela, e seu atual entrincheiramento, as intermitentes sublevações "criollas" na Bolívia indigenista ou mesmo o conflito egípcio parecem ressuscitar aquelas reflexões eurocomunistas.

"O golpe contra Allende, que crescia em cada eleição, foi dado pelas classes altas, as oligarquias, com a ajuda de um Henry Kissinger (secretário de Estado de Richard Nixon) muito inteligente e com dinheiro. Em uma batida de caminhoneiros em greve, os pegamos com notas de US$ 1 mil no bolso", lembra Danilo Bartulín, médico pessoal e amigo de Allende, cujo cargo oficial era médico-chefe da Presidência da República. Bartulín dormiu em um quarto contíguo no ano da convulsão, e atendia aos telefonemas do governante durante seu descanso. Acompanhou-o em viagens e em horas cruciais e costumava jogar xadrez com o mandatário até as 2 da madrugada. "Deixe-me ganhar para ir dormir", ele me dizia. Foi torturado e preso durante dois anos depois de sua detenção em La Moneda.

A última tentativa de evitar a quartelada se desenrolou na noite de 17 de agosto na casa do cardeal Silva Henríquez, anfitrião de um jantar entre o presidente e o chefe da democracia cristã, Patricio Aylwin, que acusou Salvador Allende de destruir a democracia e conduzir o Chile para a ruína econômica e a ditadura do proletariado. "Eu o esperava no carro", lembra hoje Bartulín. "Ao chegar, por volta das 2 da madrugada, disse-me: 'Não querem nada. Negam-nos o pão e o sal'. Então eu lhe disse: 'Vamos à Cúpula de Argel (do Movimento de Países Não Alinhados, de 5 a 9 de setembro de 1973), mas você passa pelo Vaticano e pede uma audiência ao papa para que a democracia cristã se abrande'. Ele acha boa a iniciativa e se prepara um avião para cerca de 20 pessoas. A ideia se mantém, mas algumas vozes alertaram: e se derem o golpe quando estivermos fora? Finalmente, Allende não foi à Cúpula de Argel nem pediu audiência a Paulo 6º, porque os acontecimentos se precipitaram".

A subordinação das forças armadas ao poder civil durante quatro décadas havia contribuído para assentar o mito de seu "profissionalismo", assumido de maneira acrítica por Allende e amplos setores da esquerda, segundo explica Amorós em seu livro. No caso de um golpe de Estado, a União Popular confiava em que uma parte significativa dos militares cumprisse seus deveres constitucionais, mas não ponderou adequadamente a vinculação técnica, econômica e ideológica do estamento militar chileno com os EUA, que remontava a 1947, ano da assinatura do Tratado Interamericano de Defesa Mútua. "Por outro lado, o Relatório Church revelou que, entre 1966 e 1973, 1.182 oficiais chilenos foram adestrados em centros militares desse país, onde lhes inculcaram a Doutrina de Segurança Nacional anticomunista e lhes ensinaram métodos terríveis de tortura que foram postos em prática a partir de 11 de setembro de 1973".

Há muitas provas sobre a cobertura americana do golpe. Peter Kornbluh, diretor do Projeto de Documentação do Chile do Arquivo de Segurança Nacional, conseguiu que fossem desclassificados mais de 24 mil documentos secretos da CIA e do Departamento de Estado. Os mais importantes são reproduzidos no livro "Pinochet: los archivos secretos", agora reeditado e ampliado (ed. Crítica). A participação dos EUA no complô foi tão determinante quanto a direitização da democracia cristã, muito próxima da UP sob a direção de Radomiro Tomic. "Infelizmente, desde a eleição de Allende a atitude do ex-presidente Eduardo Frei foi a de um energúmeno, que assumiu todo o discurso anticomunista e antipopular da extrema-direita chilena e dos círculos do governo americano, sensível às posições de suas empresas transnacionais. Esqueceu-se do socialismo comunitário", salienta Óscar Soto.
A democracia cristã perdeu sua sensibilidade social e Salvador Allende, a vida. Teria podido conservá-la? "Eu o mantive preparado sobre as operações para que saísse vivo de La Moneda", lembra Bartulín. "Tínhamos casas clandestinas para escondê-lo. Propus sua saída em uma pequena reunião. Ainda não haviam bombardeado. Falei com pessoas do Ministério de Obras Públicas, onde estavam os carros, e havia um monte de 'gaps' (Grupo de Amigos do Presidente). Eles disseram que podíamos sair quando quiséssemos, porque ainda não havia toque de recolher e os carros podiam circular. Allende me disse: 'Está bem, tenha a operação preparada'. Então alguns disseram que não, que era preciso resistir até o final, até a morte. Eu dizia que era melhor um Allende vivo do que morto, e que eu ficaria. O plano era que três carros saíssem de La Moneda com Allende em um deles, sem que ninguém pudesse identificá-lo. Os que ficassem continuariam atirando para dissimular a saída de Allende. Se tivesse continuado vivo, poderia ter mudado a história".

Mas o ânimo de Allende e seus leais sofreu um golpe quando Augusto Olivares, diretor da televisão nacional, se deu um tiro na fronte. O abatimento de La Moneda contrastou com a satisfação dos chefes golpistas pelo desenlace de seu bombardeio e assalto ao palácio presidencial. Carvajal informou sobre a morte de Allende a Pinochet e Gustavo Leigh, comandante da força aérea, neste grotesco comunicado: "Há uma informação do pessoal da Escola de Infantaria que está dentro de La Moneda. Pela possibilidade de interferências, vou transmiti-la em inglês: 'They said that Allende committed suicide and is dead now' [Eles disseram que Allende cometeu suicídio e está morto]. Digam-me se entendem'. Pinochet: Entendido. Leigh: Entendido perfeitamente".

Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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