Grupo cria sociedade alternativa para viver de forma sustentável e justa
Protegidas da garoa pelo alpendre da casa, duas crianças dormem sozinhas em uma das barracas montadas em um sítio em São Carlos (a 232 km de São Paulo). Vindo de longe, o som de tambores se mistura com o barulho da chuva. O dia seguinte será cheio para a criançada, que precisará organizar a vez de quem balança no tecido amarrado no tronco da árvore. Um amanhã repleto de afazeres também espera os cerca de 600 estudantes, pesquisadores, agricultores, ativistas, artistas, vindos de cidades de diversos Estados do Brasil. Compartilharão os trabalhos, trocarão experiências e cuidarão uns dos outros - do corpo e do espírito – no 6º Enga (Encontro Nacional de Grupos de Agroecologia).
O dia vai sendo tomado por cirandas, rodas de capoeira, espaços de meditação e cura. Três cavalos ziguezagueiam soltos pelo espaço, faz-se música em todo canto. Os participantes integram grupos que desenvolvem ou fomentam a agroecologia – proposta alternativa de agricultura familiar socialmente justa, economicamente viável e ecologicamente sustentável. O que une cada uma é um ideal semelhante: a busca por uma forma de vida baseada na cooperação, no respeito às individualidades, em relações humanas mais justas e em harmonia com a natureza. Ideias na cabeça, enxada e computadores nas mãos. E o roçado no sítio vai virando um enorme mutirão de construção de sonhos.
A reportagem do UOL esteve presente nos últimos dois dias do encontro, realizado entre 12 e 16 de novembro em uma ecovila (onde famílias vivem de forma coletiva e produzem gêneros agrícolas orgânicos de maneira sustentável) na zona rural da cidade do interior paulista. Pode então ver de perto uma mostra de um movimento que busca dar coerência prática àquilo que muitos sonham para o mundo. Ao visitante de primeira viagem, é como se alguma semente de Woodstock, festival ícone da contracultura realizado em fazenda nos EUA em 1969, germinasse aqui, agora. Mas estamos no século 21.
O moderno se alia ao colaborativo, a pesquisa acadêmica, a práticas solidárias. Assim, da horta à cozinha comunitária, da cozinha ao banheiro seco que transforma fezes em composto, passando pelos produtos de higiene naturais e pela pia de lavar a louça que usa princípios da permacultura, tudo é feito de forma pensada aliando conhecimento e disposição para colocar a mão na massa.
"O eixo principal [da realização do encontro] é a tecnologia social do mutirão. Com muita gente, o 'mutirão formiga', a gente avança fenomenalmente", diz Gabriel Rampone, 31, permacultor e "tibapora", morador da ecovila Tibá.
Nessa toada, tudo foi sendo construído. Mutirões de até 80 pessoas, feitos durante os finais de semana desde janeiro, por grupos de São Carlos, Rio Claro, Botucatu, Araras e outras cidades do interior paulista, garantiram a infraestrutura do acampamento. Uma cisterna foi elaborada para levar água aos chuveiros, feitos de bambu. Os banheiros secos, construídos de forma a preservar o meio ambiente, salvaram ao menos 100 mil litros de água de se tornar esgoto.
"A gente está de fato plantando o Enga há um ano. Plantamos mandioca e hortaliças no tempo de colhê-las para comer no encontro", conta Bárbara Lopes, 27, bióloga e integrante do grupo ViDA (Vivências e Discussões em Agroecologia). Os produtos orgânicos, vindos da plantação local ou dos pequenos agricultores da região, foram usados nas refeições veganas. Até a cerveja servida nas festas era de um produtor artesanal vizinho.
O financiamento do evento, que acontece desde 2009, buscou alternativas colaborativas, sem patrocínio privado, usando uma plataforma de crowdfunding chamada Catarse. Os cerca de R$ 60 mil orçados foram garantidos com o valor arrecadado com as inscrições (R$ 90, sendo grátis para agricultores) e com as doações.
"Uma das identidades do encontro é a coerência ideológica colocada na prática. Se acredito que temos que ter pensamento mais ecológico, vou transferir para o meu dia a dia o máximo que puder. Se não quero uma sociedade autoritária e repressora, vou lutar para refletir na minha prática o que almejo para a sociedade", diz Tatiana Weckeverth Furquim, 25, estudante de gestão ambiental da UFPR em Matinhos e integrante da Motirõ Sociedade Cooperativa. O encontro deste ano teve o tema “Sê-mentes livres. Re-existência”.
Só uma coisa no acampamento não era natural, revela ao repórter uma das crianças que participava do Enguinha. Alfajores, feitos no dia em uma casa da ecovila, vendidos em um furgão colorido. Para se enlambuzar do doce, era preciso ser rápido e comprar antes que acabassem. Feitos com chocolate e açúcar industrializados. Mas, mesmo assim, em oficina que tinha como o objetivo "inundar o mundo de doçura, amor e muita paz", como dizia um relato no Facebook.
Trocas de sementes e de sorrisos
As trocas começam pelos sorrisos. Não se passa por ninguém sem deixar e receber um. O escambo mais valioso, entretanto, é o de sementes crioulas – guardadas desde gerações passadas. É fácil entender como tudo funciona: um agricultor do Rio de Janeiro tem uma nascente de água em sua propriedade e gostaria de garantir sua preservação. No Enga, conhece um estudante do Rio Grande do Sul que estuda a proteção de fonte usando um método agroflorestal. Um aprende como o outro, os dois ganham exemplos e referências.
O engenheiro agrônomo Rui Silveira Camargo, 63, oferecia sementes de curcubitáceas (família das abóboras) que seleciona em seu sítio na região do triângulo mineiro desde 1975. "Sempre me preocupei em produzir naturalmente o alimento", conta ele. Com a oferta de sementes, uma roda logo se forma e discussões se iniciam. "Qual distância manter entre canteiros?", pergunta um. "Se der bicho, deixa, que equilibra sozinho", dá a dica outro. Saímos dali sabendo mais sobre técnicas naturais de cultivo e com relatos da chegada da frente agrícola ao cerrado de MG. "Chorei copiosamente quando vi tudo queimado e desmatado na década de 1980", lembrava Rui.
Entre os participantes mais velhos, havia antigos ativistas, com histórias para contar de lutas contra a construção de hidrelétricas nas décadas de 1970, 1980 - época em que "ambientalista era considerado subversivo", como dizia um deles. Para o permacultor Mario Barbarioli, 58, o diferencial de um encontro como o Enga está no que motiva seus participantes. "Eles não estão aqui por ditames comerciais, por causa de alguma política pública, mas porque querem. E fazem um esforço enorme para realizar um encontro como que eles querem que seja. É como o Gandhi dizia: 'seja a mudança que você quer ver no mundo'".
Política, capoeira e Rede
Já passava uma hora da reunião acalorada. Bate um sino. Pausa de um minuto para alongar o corpo, respirar fundo, relaxar. “Sinta seu corpo abraçado pela terra”, diz o jovem que puxa a meditação. Na reunião plenária que encerrava o encontro, questões importantes estavam em debate, como a organização dos próximos passos da Rega (Rede de Grupos de Agroecologia do Brasil) e a aprovação de uma carta com diversas bandeiras de luta – como o apoio à campanha permanente contra o uso dos agrotóxicos, reforma agrária popular, demarcação das terras indígenas, direito dos animais, luta LGBTQI, dentre outras (leia íntegra aqui).
No encontro, faz-se política a todo tempo pois se pensa cada prática como uma forma de atuação no mundo. Uma participante levava em uma tradicional cesta indígena pendurada na cabeça um facão de usar na roça e um computador da Apple. Sem grilos. Um dos mais atuantes na plenária política deixa o encontro levando berimbau a tiracolo. Capoeira e militância se misturam e formam híbridos. A reportagem não ouviu em nenhum momento alguém preocupado em debater o "Brasil dividido" entre o PT e o PSDB. Canta-se e dança-se cacuriá (dança típica do Maranhão), toca-se sertanejo na viola e defende-se a construção do pós-capitalismo.
As decisões na plenária são tomadas em consenso, sinalizado pelo grito de guerra de "Aho!". Não há contagem de votos, presidência, chapas. A autogestão é a forma de organização política. "Parabéns para nós, estamos construindo horizontalmente, isso é uma vitória em política. O que a gente está fazendo é bacana demais", diz uma participante, comentando um dos encaminhamentos da assembleia.
Nada se limita aos 600 participantes e aos cinco dias do acampamento. Quem passou por ali virou um agente multiplicador de redes maiores – tecidas nas comunidades locais, com movimentos sociais, nas listas de e-mail e redes sociais. A própria Rega, criada em 2010, organizadora do Enga, congrega mais de 90 grupos constituídos nas universidades e busca mapear e articular novos coletivos.
"A gente discute aproximação de mais agricultores, da juventude rural, pessoal de sindicatos, das pastorais da juventude rural, de outros espaços", conta Tatiana Furquim.
O espaço não é isento de olhares mais céticos. Fazendo a ressalva de que a agroecologia é “questão de sobrevivência para o Brasil”, Rui Silveira alfineta: “os coletivos parecem liliputianos. Aquela minoria guliveriana que enfrenta um gigante do desastre total que as pessoas não enxergam”, referindo-se a consumismo, desperdício e devastação da natureza.
As sementes guardadas na bagagem dos que pegam estrada de volta para casa, no entanto, possuem ambição grande, de virar floresta. A colheita é certa, diz o ditado e confirma a natureza.
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