Amanda Cotrim

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Reportagem

Sete dias em Caracas: o que vi e vivi durante as eleições venezuelanas

Depois do resultado das urnas, na primeira hora do dia 29 de julho de 2024, um apagão tomou conta de Caracas. A cidade ficou vazia e silenciosa, com exceção dos centenas de chavistas que esperavam para ouvir o discurso da vitória de Nicolás Maduro, em frente ao palácio do governo, no centro da capital.

Mas até os apoiadores eram poucos comparados a anos anteriores.

A quantidade de pessoas nas ruas apoiando o governo é uma espécie de termômetro político no país. Não por acaso no encerramento de campanha dos candidatos, no dia 25 de julho, muitos opositores me perguntavam se "havia muita gente com Maduro". A recíproca era verdadeira. Isso mostra como as ruas, principalmente na capital, se constituíram como lugar de disputa e legitimidade política.

Depois do resultado oficial

Eu estava cobrindo a apuração dos votos no Conselho Nacional Eleitoral. Por volta de 1h, não havia mototáxi, táxi ou motorista de aplicativo na região. Nada.

A minha sorte foi que mais cedo eu tinha encontrado um amigo cinegrafista que me disse de um motoqueiro que estava ajudando os jornalistas a se locomoverem pela cidade. Subi na moto desse trabalhador, que não votou em Maduro e estava impressionado com a "tranquilidade" da capital após o anúncio da vitória do chavismo. Nem apoiadores e nem opositores nas ruas. Uma "calma tensa" estava no ar.

No dia seguinte, a capital amanheceu chuvosa e ruidosa, com panelaços em bairros de classe média, por volta das onze da manhã. O que surpreendeu, contudo, foram as primeiras panelas que reclamaram nos bairros populares. Um sinal do que seria aquele histórico 29 de julho.

Ao longo do dia, a chuva parou e os protestos se intensificaram. Comércios fecharam. Parecia um misto de pandemia com guerra. Estátuas de Chávez derrubadas. Cartazes de Maduro rasgados. Manifestantes ateando fogo e fazendo barricadas. Repressão policial.

Foram registrados protestos em ao menos 12 estados venezuelanos e na capital Caracas. "O morro desceu para o asfalto para protestar contra a eleição de Maduro", era o que muitos diziam, impressionados. Naquela altura, parte da polução desconfiava de fraude eleitoral.

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Junto com esse levante, inúmeros vídeos passaram a circular nos grupos de WhatsApp de venezuelanos com registros de assassinatos durante os protestos naquele dia. Não dava para saber se eram imagens reais, se eram atuais ou de anos anteriores. Estava tudo confuso e caótico.

Nos vídeos, protestos reprimidos com tiros a queima roupa. Eram os conhecidos "coletivos", diziam a oposição. Isto é, grupos de civis que vão aos protestos a mando do governo para aterrorizar os manifestantes, atirando — uma prática no país.

O chavismo, por outro lado, acusou a oposição de promover esses assassinatos para culpar o governo. Maduro chegou a ir à público dizer que os manifestantes eram marginais e que tinham envolvimento com drogas.

Além de uma guerra na rua, o país lidava com uma guerra de narrativas. Uma política da confusão.

Essa semana, a ONG de direitos humanos Prove divulgou um relatório apontando que 24 pessoas morreram nos protestos pós eleições, entre domingo, 28, e segunda, 5 de agosto.

Estive pela primeira vez em Caracas em setembro de 2019. Realizei um trabalho documental fotográfico, cujo objetivo foi retratar o cotidiano na capital. Cheguei sem conhecer ninguém, mas lá fiz amigos, alianças e contatos que me levaram a lugares que não estavam no roteiro.

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Caminhei pelos morros caraquenhos amparada por ONGs independentes, opositores e militantes chavistas, que me ajudaram a mapear aquela geografia tão complexa e fascinante. Era o segundo mandato de Nicolás Maduro, sucessor de Chávez, morto em 2013.

Maduro, diferente de seu líder, mantinha uma imagem intransigente, pouco carismática e com mais pinta de autoritário. Essa imagem tentou ser modificada por seu marketing político nas eleições de 2024, que associou Maduro a uma figura "leve" e "jovem". Mas a tentativa se mostrou forçada.

Capital dividida

Caracas, na Venezuela, em clima de eleição presidencial
Caracas, na Venezuela, em clima de eleição presidencial Imagem: Amanda Cotrim/UOL

Cinco anos depois da minha primeira vez em Caracas, a capital seguia dividida geograficamente e ideologicamente, constituída por suas marginais que levam aos opostos da cidade. Em comparação a 2019, Caracas estava mais dinâmica: o país havia superado suas crises agudas e tentava reinventar um projeto chavista com a marca de Nicolás Maduro.

O regime de Maduro se aproximou dos EUA, apontado como um dos responsáveis pela asfixia econômica da Venezuela. "Em parte, a Venezuela lida com um bloqueio econômico dos EUA e em parte a incompetência do governo Maduro", me disse um chavista critico ao governo.

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Encontrei uma capital mais aberta ao mercado, com pequenos empreendimentos que não se viam antes. Uma notável flexibilização econômica que ao mesmo tempo que permitiu um respiro, também gerou uma intensa dolarização.

Quando Chávez se tornou presidente, em 1999, os pobres representavam mais de 50% da população. Naquele momento, o líder venezuelano prometeu distribuição de renda. Em 2007, o índice de pobreza havia caído para 9,5%, de acordo com dados oficiais do país.

Chávez dizia que um dos países que mais produzia petróleo não podia concentrar os lucros nas mãos de poucos. Atualmente, de acordo com estudo da Universidade Andres Bello, 50% da população é pobre, o mesmo índice de países como a Argentina — e o mesmo que Chávez encontrou em 1999.

Chávez prometeu que os mais pobres conheceriam a Constituição e participariam da política. O caráter "socialista" do governo foi se aperfeiçoando com o passar dos anos e se intensificou após a tentativa de golpe que o líder venezuelano sofreu em 2002, cujo apoio popular foi fundamental para reverter aquele intento.

O então presidente nacionalizou inúmeras empresas, sendo uma delas do ramo de energia, da família de Maria Corina Machado, atual opositora do chavismo, que foi impedida de disputar a eleição por estar inelegível por 15 anos, mas que deixou Edmundo Gonzales como seu representante.

Em 2019, apesar desigualdade social, semelhante ao que vemos em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Bogotá ou Santiago, o que tinha fisgado minha atenção foi a devoção e, porque não dizer, a lealdade ao chavismo, principalmente entre jovens pobres, de bairros como La Pastora, vizinho ao palácio presidencial em Miraflores.

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Naquele ano, a defesa ao governo de Maduro não era pelo governo em si, mas pelo que representou Chávez para muitos venezuelanos: uma oportunidade de insubordinação dos mais pobres.

Revolta recalcada por medo de dizer

29/07/2024 - Venezuelanos fazem protesto após Maduro ser declarado presidente
29/07/2024 - Venezuelanos fazem protesto após Maduro ser declarado presidente Imagem: JUAN CARLOS HERNANDEZ/AFP

A contradição é que os pobres em 2024 já não se mostraram dispostos a defender um governo que deixou a população mais vulnerável às margens, a custa de muito sacrifício.

Engana-se quem pensa que "só agora" a favela se revoltou contra o governo de Maduro. A diferença é que essa revolta estava recalcada por um medo de dizer.

A indignação e o cansaço em relação a Maduro já existiam nas favelas em 2019.

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A diferença é que essa revolta desceu o morro e se fez presente nos protestos de ruas do dia 29 de julho de 2024, após o resultado das urnas.

A revolta só estava escondida dos olhos da classe média e dos meios de comunicação, que se surpreenderam com a favela no asfalto, como foi o caso da jornalista aposentada Elsi Manzanares, que saiu para protestar na região opositora de Altamira e ficou entusiasmada de ver que parte da população de Petare estava presente no protesto. "Não somos mais nos a classe média que estamos nas ruas. A favela desceu. Os pobres também estão cansados. Demorou, mas eles reagiram", me disse.

Em 2019, em Petare, considerada a maior favela da América Latina, conheci uma mãe, cuja filha tem paralisia cerebral. Ela subia os morros empurrando a cadeira de roda da garota que na época tinha 14 anos, com sorriso no rosto. Perguntada sobre o que pensava do governo Maduro, sua fisionomia mudou. A queixa, que demorou ser enunciada por palavras, se revelou em seu olhar. Seu semblante deixou ver um misto de decepção e raiva.

"Só não vou embora porque não posso. Para passar necessidade em outro país, prefiro ficar aqui, perto da família e dos amigos, que me ajudam", me disse. Naquele momento, eu entendi que até migrar era um privilégio. Ela, assim como inúmeras pessoas que conheci naquela tarde em Petare desejavam ir embora. Mas ficar na Venezuela, para aquelas pessoas que tinham muito pouco, era defender sua própria dignidade.

O medo não é em vão. O regime de Maduro é acusado de perseguir quem pensa diferente e prender opositores de modo arbitrário. Recentemente, o ex deputado opositor, Freddy Superlano, foi "sequestrado" pelas forças policiais e a família do político afirma que não tem notícias dele e exige prova de vida.

Desejo de denúncia

Antes do resultado das eleições, havia um desejo de denúncia circulando pelas ruas de Caracas. Encontrei com muito mais facilidade pessoas dispostas a criticar o governo. Um aposentado de 80 anos, me disse rindo, sem papas na língua, a poucos metros da praça Bolívar, reduto chavista, que o governo de Maduro era um desastre, um fiasco.

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Entre os mais pobres, o que ouvi nesses sete dias em Caracas era de que não importava se Maduro é de esquerda, de direita, se a Venezuela é um protótipo de socialismo, capitalismo de Estado ou qualquer outra definição politica. O que importava é se as pessoas conseguissem viver bem, ter comida, saúde, educação, oportunidades, trabalho. Os chavistas dizem o mesmo. Que o mundo está preocupado se a Venezuela é uma democracia, mas não esta preocupado com o bloqueio econômico dos EUA. "Se os Estados Unidos chancelassem o governo Maduro, estaríamos todos tão preocupados com a Venezuela?", questionam os apoiadores da revolução bolivariana.

Muitos jovens periféricos, de menos de 25 anos, não viram outro governo que não o chavista. Não sabem dizer se com a oposição seria melhor. Eles confiam na promessa de que o projeto bolivariano "vai vingar''. Ao mesmo tempo, não negam a fome, a precariedade dos salários, a corrupção, mas as suportam , justificam e relativizam os abusos do governo.

O que fazem esses jovens seguirem a Maduro, em muitos casos, é a total desconfiança na oposição. "Edmundo Gonzales não vai eliminar as mazelas, só vai maquiá-las", me relataram. Para os chavistas mais jovens, com Maduro os pobres têm lugar, nem que seja no discurso.

Hoje, me perguntam como está o clima na Venezuela. Digo que saí do país há sete dias mas que a definição "calma tensa" que tanto escutei pelas ruas de Caracas segue representando a atmosfera sinistra pela qual atravessa o país.

Reportagem

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