Amanda Cotrim

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Reportagem

'Atiraram no Pianista' retrata sumiço de brasileiro na ditadura argentina

Imagens que atualizam um acontecimento. Um documentário com depoimentos de Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Ferreira Gullar, Gilberto Gil, Toquinho e mais figuras importantes da música brasileira reivindica verdade, memória e justiça, em formato de animação.

O longa "Atiraram no Pianista", do renomado diretor espanhol Fernando Trueba, em parceria com o também espanhol Javier Mariscal, conta a história do desaparecimento do pianista brasileiro Francisco Tenório Cerqueira Júnior, músico de Vinicius de Moraes e Toquinho, em 1976, em Buenos Aires.

O documentário terá sua primeira exibição na capital argentina, no Espaço Memória e Direitos Humanos —que, no passado, foi o maior centro clandestino de detenção e tortura da ditadura argentina, com mais de cinco mil presos.

O direito de exibição do longa foi adquirido pelo Instituto de Políticas Públicas de Direitos Humanos do Mercosul (IPPDH), cuja sede é na capital portenha, em parceria com a Embaixada do Brasil em Buenos Aires. A projeção inédita marcada para hoje (30) ocorre no contexto da reabertura da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEDMP), em Brasília.

A história de Tenorinho

A história de Tenorinho, como o pianista era conhecido, precisa ser conhecida por todos os brasileiros, ressaltou a diretora do Instituto de Políticas Públicas de Direitos Humanos do Mercosul, Andressa Caldas.

O filme é a materialização da relação entre Brasil e Argentina, no contexto da ditadura civil-militar protagonizada por ambos os países. A Argentina, aliás, tem muito o que ensinar ao Brasil a respeito de memória, verdade e justiça, analisou Caldas.

"Quando essas histórias (de desaparecimento) não são resolvidas ou são negadas, elas acabam sempre retornando. A história do Tenorinho não é do passado. É uma história atual, considerando que o Brasil está retomando hoje a Comissão de Mortos de Desaparecidos Políticos", considerou.

A Argentina tem 30 mil pessoas desaparecidas pela ditadura militar. "O regime de repressão contou com uma regional envolvendo países como o Brasil, que reprimiu e violou os direitos humanos e eliminou pessoas que pensavam diferente", lembrou Caldas.

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Exibir esse filme no Espaço de Memória de Direitos Humanos é de suma importância. Foi aqui que o Tenorinho foi preso, torturado. Daqui foi que ele desapareceu.
Andressa Caldas, diretora do Instituto de Políticas Públicas de Direitos Humanos do Mercosul

"Há 20 anos, o maior centro de prisões e torturas da Argentina foi ressignificado e transformado em um espaço de proteção dos direitos humanos; uma decisão de Estado, portanto, irreversível, independente do governo", destacou Caldas.

O filme é exibido também em um momento político em que o governo de Javier Milei, que foi eleito relativizando os crimes da ditadura civil-militar, fechou no dia 14 de agosto uma unidade especial de investigação da Conadi (Comissão Nacional pelo Direito à Identidade), que investigava o desaparecimento de crianças pela ditadura argentina. Segundo a imprensa argentina, nos últimos três anos, o órgão originou 60% dos casos tratados pelo Poder Judicial do país.

O desaparecimento do pianista

O desaparecimento do pianista Tenório, seis dias antes do golpe militar na Argentina, é um daqueles enredos que de tão inacreditáveis se tornam arte. Vinicius de Moraes "morreu com essa angústia", de não saber a verdade sobre o desaparecimento de seu pianista, afirmam os depoimentos do longa.

Tenório acompanhava Vinicius de Moraes em uma turnê pela América do Sul, quando desapareceu no dia 18 de março de 1976, depois de um show lotado no teatro Gran Rex, na Avenida Corrientes, em Buenos Aires. O músico de 34 anos saiu do hotel Normandie, no centro da capital porteña, onde estava hospedado, para ir à farmácia e nunca mais voltou.

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O sumiço de Tenório ocorreu no contexto da repressão política, dos sequestros, das torturas, das mortes e dos milhares de desaparecidos dos regimes da ditadura civil-militar na Argentina e no Brasil.

O longa mostra que o pianista foi sequestrado e preso na Escola Mecânica da Armada (hoje Espaço de Memória e Direitos Humanos), onde foi torturado. "A morte dele foi o que restou, já que Tenório não poderia ser encontrado, pois comprometeria o regime militar no Brasil e na Argentina (...) "Ele foi morto com uma bala na cabeça", revelou um agente da repressão Argentina, no documentário.

Ditadura matava quem tinha "cara de subversivo"

O desaparecimento de Tenório se tornou um mistério. A investigação do caso apontou que nem o pianista e nem Vinicius de Moraes tinham envolvimento com nenhuma atividade política.

Acredita-se que o músico possa ter sido sequestrado pelo regime argentino por engano, já que Tenório tinha o estereótipo que os militares buscavam na época: cabelo longo e barbudo.

Devido à repercussão de seu desaparecimento, o Estado argentino nunca entregou o corpo do músico, visto que seria uma prova das torturas e assassinatos levadas a cabo pela ditadura do país. Depois de 21 anos de desaparecimento, em 1997, a Secretaria de Direitos Humanos da Argentina reconheceu a responsabilidade do Estado pelo desaparecimento de Tenório.

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Hoje, Francisco Tenório Cerqueira Júnior tem o nome inscrito no monumento do Parque da Memória, em Buenos Aires, junto a milhares de outros desaparecidos políticos.

Indicado ao Oscar

O longa "Atiraram no Pianista" ganhou como melhor animação o Prêmio Goya de 2024 e foi indicado ao Oscar.

O diretor Fernando Trueba descobriu a história do pianista no início dos anos 2000 e precisou da ajuda do espanhol Mariscal para traduzir um extenso arquivo que ele coletou nos últimos vinte anos.

O filme é uma arqueologia sobre a bossa nova e o talento de Tenório, reconhecido no longa como o maior pianista brasileiro de seu tempo e um homem intelectual e culto, que poderia conversar sobre diversos assuntos em mais de um idioma.

O documentário é uma homenagem à música brasileira e à busca pela verdade, memória e justiça, não apenas de Tenório, mas de todas as vítimas da ditadura civil-militar da região. Também é um reconhecimento do talento desse músico que é desconhecido do grande público.

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Além disso, para Andressa Caldas, a exibição do filme em Buenos Aires e a abertura da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, em Brasília, no mesmo dia, é um símbolo de que a luta por memória e verdade dos crimes da ditadura não param. "Os desaparecimentos geram um sofrimento permanente e violam a saúde mental dos familiares. Os danos são permanentes", comenta a diretora do Instituto de Políticas Públicas de Direitos Humanos do Mercosul.

Tenório é lembrado em música de Toquinho

Logo após o desaparecimento de Tenório na Argentina, Vinicius de Moraes ainda permaneceu alguns dias no país tentando encontrar o seu músico, mas não teve sucesso, disse Toquinho no filme. Ele destacou o talento de Tenório e disse ser um dos músicos mais importantes da bossa nova.

O desaparecimento do pianista foi citado na música Lembranças, de Toquinho, cujos versos dizem:

Tenório saiu sozinho na noite

Sumiu

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Ninguém soube explicar

Outros amigos se foram Guardando seus ideais

Entre verdade e delírio

Uns semearam saudade no exílio

Outros não voltam jamais.

SERVIÇO

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Dia 30 de agosto
15h - Painel de debate
17h - Projeção do filme "Atiraram no Pianista"
Local: Sede do Instituto de Políticas Públicas de Direitos Humanos do Mercosul, no Espaço de Memória e Direitos Humanos, em Buenos Aires (Av. del Libertador 8151)

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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