Enfrentamento ao racismo une trajetórias de pensadores do Brasil e dos EUA
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Com formação histórica marcada pelo sequestro e tráfico de pessoas africanas e um longo processo de escravidão, Brasil e Estados Unidos possuem sociedades estruturadas pelo racismo.
Nem sempre as expressões da discriminação racial são semelhantes em ambos países, mas as formas de superação por vezes são convergentes.
Neste ano de 2020, por exemplo, o movimento Vidas Negras Importam (Black Lives Matter) inspirou manifestações lá e cá contra a violência que atinge mais cruelmente as pessoas negras. As reivindicações têm impactado tanto as eleições norte-americanas como, espera-se, as eleições municipais no Brasil.
Um livro lançado na última semana lança luz sobre esses processos de estruturação do racismo e tentativas de superações nestas nações, por meio da trajetória de dois intelectuais negros que tiveram a relevância intelectual e ativista apagada ao longo da história.
Em "Travessias no Atlântico Negro: reflexões sobre Booker T. Washington e Manuel R. Querino (Edufba)", Sabrina Gledhill apresenta as táticas destas figuras emblemáticas no combate antirracista na virada do século XIX.
Como foco comum, os dois apostaram na Educação e na divulgação de imagens positivas de pessoas negras.
Gledhill é inglesa, morou no Brasil por mais de duas décadas e o livro é resultado da sua tese de doutora em Estudos Étnicos e Africanos na Universidade Federal da Bahia.
O resgate de Manuel Querino
O lançamento da obra reuniu em uma live pesquisadores que têm se dedicado a trazer à tona o pioneirismo de Manuel Querino nos estudos sobre a contribuição dos negros para a sociedade brasileira em diferentes aspectos.
Ele é considerado o fundador da história da arte baiana e dos estudos da culinária popular da Bahia.
Recentemente foi lançado também o livro "Manuel Querino - criador da culinária popular baiana" (Editora P55), dos pesquisadores Jeferson Bacelar e Carlos Alberto Dória, que demonstra o pioneirismo do baiano na valorização e registro de receitas da gastronomia popular.
Nascido em Santo Amaro da Purificação, Recôncavo Baiano, em 1851, Querino foi um abolicionista, jornalista, líder operário, político, pintor e professor de desenho industrial.
Com notável desempenho no meio cultural, foi inspiração para que Jorge Amado criasse o personagem Pedro Archanjo, protagonista do romance Tenda dos Milagres, de 1969.
Sabrina Gledhill teve contato com Querino pela primeira vez justamente a partir da epígrafe de uma edição em inglês do livro de Jorge Amado, onde se pode ler o trecho da obra O Colono Preto como fator de Civilização Brasileira, de 1918:
"O Brasil possui duas grandezas reais: a uberdade do solo e o talento do mestiço".
Querino publicou ainda títulos como: Artistas bahianos (1909); As artes na Bahia (1909); Bailes pastoris (1914); A raça africana e os seus costumes na Bahia (1916); A Bahia de outrora (1916), além dois livros didáticos sobre desenho geométrico e diversos artigos publicados na revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.
O negro mais famoso do mundo
Booker T. Washington, nascido escravo na Virginia (EUA), em 1856, após a alforria, trabalhou como zelador para custear seus estudos no Instituto Hampton, depois fundou o Instituto Normal e Industrial Tuskegee.
Tornou-se educador e orador e teve contato direto com líderes mundiais como o ex-presidente Roosevelt, que o convidou para jantar com sua família na Casa Branca, despertando a atenção internacional.
"Washington chegou a ser considerado o 'negro mais famoso do mundo'", aponta Gledhill em sua obra.
Washington acreditava que uma boa instrução era o caminho para o futuro individual e coletivo do negro, associada a uma educação profissionalizante.
Suas ideias foram duramente criticadas pelo sociólogo W.E.B. Du Bois (primeiro negro a se tornar doutor na Universidade de Harvard) e outros líderes afro-americanos que apostavam na militância e na participação política e condenavam o trabalho braçal como única opção aos negros.
Na pesquisa de Gledhill, ao contrário da imagem de comodista ou conciliador que se consolidou, é apresentada a trajetória de Washington no contexto das realidades de sua época de extrema violência racial.
Ele se dedicou aos ex-escravizados que enfrentavam o grande desafio do analfabetismo, já que as leis escravistas os proibiam de ler ou escrever.
Racismo de marca ou de origem
O livro também coloca em questão a diferença entre o preconceito racial praticado no Brasil, que é "de marca", centrado nos traços físicos do indivíduo e nos Estados Unidos, que é "de origem", relacionado à ascendência.
Essa questão permite que no Brasil haja tratamentos diferenciados a partir de quanto mais fortes ou mais fracas sejam as marcas raciais (cor da pele, textura do cabelo, formado do nariz e da boca etc) e a tentativa de embranquecimento da imagem de negros ilustres, como foi o caso do escritor Machado de Assis, por anos retratado como branco nos livros.
Por outro lado, nos Estados Unidos, os negros reivindicam sua identidade racial pela origem étnica de seus pais, na regra do "uma gota de sangue" ("one-drop rule"). Assim, políticos como o ex-presidente Barack Obama (filho de uma mãe branca e de um pai negro de origem queniana) e a atual vice do democrata Joe Biden, Kamala Harris, filha de uma mãe indiana e um pai jamaicano, são facilmente identificados como negros pela sociedade norte-americanas.
Racismo Científico
Em um Brasil dominado pelo racismo científico, Querino demonstrou corajosa independência intelectual ao recusar-se a aceitar que a presença do africano e do mestiço no país fosse "um dos fatores de nossa inferioridade como povo".
Esta era a tese defendida pelo médico legista, considerado o fundador da antropologia criminal no Brasil, Nina Rodrigues, notório divulgador das ideias eugenistas de superioridade das raças.
A obra póstuma de Nina Rodrigues, Os Africanos no Brasil, de 1932, é considerada um marco fundador dos estudos sobre os povos negros no país e eclipsou as pesquisas e publicações de Querino, que traziam outra perspectiva não biológica para compreender as populações afro-brasileiras.
Enquanto a validade da obra de Querino começou a ser questionada a partir da década de 1930, culminando com a acusação de plágio - negada por estudiosos -, a visão negativa sobre Booker Washington foi fomentada por Du Bois e por outros militantes negros, durante a luta pelos direitos civis da década de 1960.
Representatividade importa
Para a autora, tanto no Brasil como nos Estados Unidos, a visão dominante sobre o negro no século XIX e no início do século XX era de uma massa de escravos ou recém-libertos, marginalizada, analfabeta e avessa ao trabalho. A existência de intelectuais, artistas e cientistas negros neste período nega este estereótipo.
Por isso, Manuel R. Querino e Booker T. Washington ajudaram a divulgar biografias de pessoas negras. Eles tinham consciência da relevância disso para quebrar estereótipos.
"Utilizaram principalmente a valorização da instrução e qualificação do negro, especialmente o recém-liberto; a formação de alianças com brancos em posições de influência e poder; e o esforço para combater estereótipos negativos de várias maneiras: utilizando imagens dignas de pessoa de cor preta, produzindo biografias de negros ilustres e oferecendo seu próprio exemplo de homens de sucesso que começaram do nada".
Durante a live de lançamento, Sabrina Gledhill informou que seu próximo projeto é traduzir e apresentar as obras de Manuel Querino para a comunidade anglófona.
Ainda é tempo de fazer justiça com a importante trajetória destes intelectuais.
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