Covid-19 não apaga memórias de fé e festa no trajeto da Lavagem do Bonfim
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A pandemia do coronavírus, em uma avassaladora segunda onda, impedirá uma das maiores expressões de fé da cultura da Bahia: a Lavagem do Senhor do Bonfim, uma procissão de 8 km pelas ruas da Cidade Baixa, em Salvador, que aconteceria hoje, 14.
No lugar do cortejo festivo entre a Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, no bairro do Comércio, e a Basílica do Senhor do Bonfim, na Colina Sagrada, que chega a reunir mais de um milhão de pessoas, este ano apenas a imagem do Cristo Crucificado circulará em carro aberto, com transmissão pela internet.
Tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) desde 2013, é a mais importante festa popular do calendário baiano depois do Carnaval e atrai fiéis de todas as partes e de diferentes religiões.
Nos últimos 200 anos, a celebração passou de uma simples lavagem das escadarias da Igreja em preparação à Festa do Bonfim (que acontece no segundo domingo após o Dia de Reis) para se tornar o principal momento da adoração ao Senhor do Bonfim, associado ao orixá Oxalá das religiões de matriz africana, em meio a uma grande manifestação cultural e festiva.
Neste ano o popular ditado "quem tem fé vai a pé" terá que ser substituído por "quem tem fé se cuida e fica em casa". Oportunidade para conhecer um pouco mais o trajeto, que passa por espaços importantes da história da cidade que, muitas vezes, passam despercebidos na agitação da festa.
Trajeto começa em um dos primeiros bairros do Brasil
O início da festividade acontece na região onde está localizado o Elevador Lacerda e o Mercado Modelo. É lá que está a Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, de onde, por volta das 9h, sai o cortejo que reúne fiéis da Igreja Católica e do Candomblé, além de turistas, foliões e políticos. O grupo mais reverenciado, sem dúvidas, são as baianas vestidas com seus trajes típicos e carregando vasos com água de cheiro.
O cortejo contava com carroças enfeitadas e puxadas por animais e até trio elétrico já fez parte da festa. Ambos foram proibidos. Atualmente, apenas pequenos carros de som, bandinhas de sopro ou grupos de percussão animam os foliões ao longo do trajeto.
O primeiro bairro percorrido é o Comércio, região das primeiras transações econômicas da cidade a partir do porto de Salvador, que possibilita a chegada e saída de mercadorias desde o século XVI.
A região também é local de outras celebrações religiosas como a festa à Conceição da Praia, padroeira da Bahia, que acontece dia 08 de dezembro; a festa de Santa Luzia, dia 13 de dezembro e também de São Nicodemus, padroeiro dos trabalhadores do porto, celebrado na última segunda-feira de novembro, podendo ser considerada, portanto, a primeira do ciclo de festas populares do verão da Bahia.
Ainda no Comércio, o cortejo da Lavagem do Bonfim passa pela Praça Marechal Deodoro, onde está o Monumento das Nações, também chamada pelos soteropolitanos de Praça das Mãozinhas por conta do formato da escultura de Kennedy Salles. Na praça está o histórico imóvel do Mercado do Ouro, que desde 2007 abriga o Museu du Ritmo.
Criado por Carlinhos Brown, no espaço ocorrem ensaios da Timbalada e outros shows, inclusive a Enxaguada du Bonfim, um das festas fechadas no trajeto da Lavagem.
Em Roma, Caminhada do Bonfim reverencia Santa Dulce dos Pobres
Na metade do trajeto rumo à Colina Sagrada, a caminhada chega ao Largo da Calçada, onde está o Plano Inclinado que dá acesso ao bairro da Liberdade, e a estação de trem que leva aos bairros do Subúrbio Ferroviário de Salvador e praias como São Tomé de Paripe e Ilha de Maré.
No Largo de Roma, os devotos do Senhor do Bonfim reverenciam a primeira brasileira reconhecida santa pela Igreja Católica, Dulce dos Pobres. Foi nesta região de operários que, na década de 1930, a feira Maria Rita Lopes Pontes, a irmã Dulce, iniciou um trabalho comunitário que se tornou a mais importante organização de assistência social da Bahia. Ali está o Hospital Santo Antônio, que integra as Obras Sociais Irmã Dulce, local que os baianos sabem ser a porta que nunca fecha para os doentes do estado. Diariamente cerca de 2 mil pessoas são atendidas gratuitamente graças ao Sistema Único de Saúde (SUS).
Depois das bênçãos de Santa Dulce dos Pobres, só resta aos fiéis e foliões o trecho da Avenida Dendezeiros para alcançar o Largo do Bonfim. Em um dos momentos mais emocionantes da caminhada, alguns sobem a ladeira que leva à Colina Sagrada de joelhos, em gratidão por alguma graça alcançada por intercessão do Senhor do Bonfim.
Lá em cima, a Basílica de Senhor do Bonfim, ponto de peregrinação de religiosos de todo o país, acolhe uma multidão que consegue realizar todo o trajeto, que dura cerca de quatro horas de caminhada. O hino religioso mais popular do estado, gravado por artistas como Lazzo Matumbi, Caetano, Gil, Gal e Bethânia, é entoado e as baianas realizam a tradicional lavagem das escadarias da igreja, com as águas perfumadas por flores e alfazema.
No gradil são amarradas as fitinhas coloridas com os pedidos ao santo e dentro da igreja (sem acesso no dia da Lavagem) é possível conferir a fé dos devotos por meio da sala dos ex-votos. Os objetos guardados ali, como partes do corpo humano reproduzidas em plástico ou gesso, registram os milagres atribuídos ao Senhor do Bonfim.
A principal festa religiosa da Bahia expressa o modo de celebrar do povo baiano, que ocupa as ruas, festeja, acolhe e une credos. Que em 2022, toda essa tradição se repita com os antigos e novos elementos de expressão desta rica manifestação cultural.
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