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Pandemia e crise fecham Alaíde do Feijão, reduto contra o racismo na Bahia
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Um dos mais tradicionais espaços de resistência negra da Bahia, o restaurante Alaíde do Feijão, no Pelourinho, Centro Histórico de Salvador, está fechado há um ano em razão da pandemia.
Alaíde da Conceição, 72, herdou da mãe, Maria das Neves, o ofício de cozinhar e vender o prato mais popular do país. O agravamento da crise de saúde e a alta dos preços impedem a reabertura do estabelecimento que conduziu por quase 30 anos —agora a retomada também ameaçada pelo fato de Alaíde ter contraído covid-19.
Ainda criança, Alaíde ajudava a mãe no tabuleiro montado na praça do Mercado Modelo, no bairro do Comércio, na região do porto. Na década de 1980, assumiu o posto e ampliou o cardápio e a freguesia.
A fama conquistada fez com que o alimento passasse a integrar seu nome. Tornou-se Alaíde Conceição do Feijão ou, simplesmente Alaíde do Feijão —uma das figuras mais representativas da luta diária das mulheres negras que enfrentam com coragem as barreiras impostas pelo racismo, sexismo e pobreza
Restaurante é ponto de articulações políticas
Os casarões coloniais do Pelourinho, que em suas fachadas expõem estabelecimentos comerciais voltados ao turismo e às artes, funcionam também como espaço de articulações dos movimentos sociais e reuniões de grupos políticos em meio a farras gastronômicas e etílicas.
O local que serve a tudo isso de forma harmônica é o restaurante Alaíde do Feijão, estabelecido na região e chefiado por ela desde o início da década de 1990.
Quem passa por lá percebe logo a importância, seja pelas fotos nas paredes de artistas e autoridades políticas. Seja pela oportunidade de encontrar representantes da cultura negra, como os presidentes do bloco afro Ilê Aiyê, Antônio Carlos Vovô; do Olodum, João Jorge Nascimento; ou do Alvorada, Vadinho França.
Todos eles integram a chamada Bancada do Feijão, com figuras que se reúnem nas mesas do restaurante para discutir os destinos políticos da cidade, em especial, ações de combate ao racismo sob o olhar atento e os palpites certeiros da matriarca.
O respeito por dona Alaíde foi construído graças à forma como ela acolheu os debates mais urgentes desde a época do tabuleiro na praça do Mercado Modelo. Entre um prato de feijão e outro, dona Alaíde testemunhou o surgimento dos movimentos políticos e culturais que tornaram Salvador referência de negritude
Fechamento entristeceu a cozinheira
"Aprendemos com ela a tratar bem todos que chegam, do rico ao pobre, do presidente da República ao catador de latinha", diz Elis Regina, 36, sobrinha de Alaíde e uma das cinco mulheres da família que atuavam no restaurante. "Minha tia não deixa ninguém sair daqui sem um prato de comida, um dinheiro de transporte ou um conselho, cheio de sabedoria."
Elis Regina conta que a decisão de suspender o funcionamento do restaurante entristeceu muito a tia. Ela diz que dona Alaíde tomou a decisão em março de 2020, após saber dos protocolos que precisariam ser adotados para evitar o contágio do coronavírus, o que incluía reformas no estabelecimento.
Minha tia chegou a fazer um orçamento, mas viu que não teria condições de arcar com aquela despesa. Pois já vinha com dificuldades para pagar todas as contas, como o aluguel do imóvel
Elis Regina, sobrinha de Alaíde
Além disso, dona Alaíde e a duas cozinheiras que a auxiliavam no preparo dos pratos integram o chamado grupo de risco pela idade e outras comorbidades, requerendo cuidados especiais. Sem condições para custear as novas despesas e acreditando que a parada seria temporária, ela interrompeu o ofício que fazia parte da sua rotina desde a infância.
Mesmo com a idade avançada, fazia questão de ir diariamente ao restaurante acompanhar o preparo das comidas, além de ir à feira comprar os ingredientes que resultam no seu famoso tempero. Disposição que garantiu o sustento das três filhas, sobrinhas, netas e agora bisnetas.
Inflação também impede reabertura
Desde o fechamento, dona Alaíde e as mulheres da família ficaram sem sua principal fonte de renda. Elis Regina, que trabalha como copeira em um órgão público, conta que o auxílio emergencial ajudou por um tempo, além do apoio de amigos e admiradores de dona Alaíde.
Minha tia diz que, se antes ela colocava uma panela de feijão no fogo com R$ 100, hoje ela gasta R$ 500 e ainda falta (...) Quando ela viu a notícia da vacina me ligou já querendo marcar uma faxina no restaurante, pensando na reabertura
Mas a faixa etária de dona Alaíde não recebeu nem a primeira dose da vacina. O calendário de vacinação de idosos, em Salvador, foi suspenso na quarta-feira (3) por falta de imunizantes.
Na última quinta-feira (4), chegou a triste notícia de que dona Alaíde do Feijão testou positivo para covid-19 e foi internada no Hospital Couto Maia. Pelas redes sociais, muitas orações e vibrações positivas para que ela enfrente mais essa batalha.
Pedidos especiais para que Omolu, o orixá considerado médico e afastador de todas as doenças e que rege a vida de dona Alaíde, a ajude a vencer esse momento. Que junto com Ogum, o guerreiro a quem é atribuído o poder sobre o feijão, ela volte a alimentar de esperança todos que têm a oportunidade de conhecê-la e ouvir suas histórias inspiradoras
Que a saúde de dona Alaíde se restabeleça, para que o restaurante Alaíde do Feijão continue, sob direção da cozinheira mais amada da Bahia, sustentando as história de resistência do povo negro.
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