Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Carla Akotirene: 'Não esperam da preta retinta a intelectualidade'
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Vou aprender a ler, para ensinar meus camaradas
Os versos da música Yá Yá Massemba, de Carlos Capinam e Roberto Mendes, servem bem como trilha para a trajetória da pesquisadora baiana Carla Akotirene, 40. A canção, que fala da noite funda e da travessia longa no navio negreiro, é cheia de fé na ancestralidade religiosa africana. É sobre ressignificação.
Quem conhece a história de Carla se enche de esperança pela maneira como ela enfrentou violências e transformou suas experiências em lentes para observar e analisar as opressões que estruturam a sociedade.
Conhecimento que a salvou e que ela compartilha com a coletividade para libertar outras pessoas. Enquanto tenta levar para as redes sociais reflexões sobre mazelas sociais como o racismo e a violência contra as mulheres, Carla enfrenta diariamente a luta contra o epistemicídio.
O termo cunhado pelo sociólogo e poeta português Boaventura Souza Santos refere-se à negação dos conhecimentos e saberes produzidos por povos que não integram o centro hegemônico do poder. Assim como a filósofa Sueli Carneiro, Souza Santos aponta estratégias utilizadas pela colonização europeia para destruir as produções culturais e o pensamento vindos da Ásia, África e Américas.
No caso brasileiro, lutamos contra uma sociedade brancocêntrica que diz: 'Vocês negros não são intelectuais'
Carla Akotirene
Ela fala sobre o racismo epistêmico, que sofre de forma ainda mais violenta por ser mulher e nordestina, distante dos centros do poder econômico e acadêmico. Mas nada interrompe seu fluxo.
'Não esperam da preta retinta a intelectualidade'
Seus textos unem conhecimentos de diferentes referências —que vão de pensadores canônicos europeus, filosofias africanas, ancestralidade religiosa e astrologia. Pela complexidade que analisa os temas estruturais do país, por vezes camuflados em uma polêmica aparentemente boba do Big Brother Brasil, conquistou muitos seguidores nas redes sociais.
Mas não ficou livre dos ataques.
Não esperam da preta retinta a intelectualidade. Querem apenas a preta gorda que fica em casa, educando. Eles só aceitam a tia Anastácia, subserviente à Dona Benta. É a colonialidade do saber. Mas não estamos apenas nas cozinhas, fomos para as ruas fazer quilombagem junto aos nossos. Também estamos nas universidades, produzindo conhecimento
Com formação em Serviço Social e concluindo doutorado em Estudos de Gênero e Feminismo na UFBA (Universidade Federal da Bahia, Carla concilia a leitura de intelectuais negras, como Lélia Gonzales, Luiza Bairros, Beatriz Nascimento, Zelinda Barros, Patricia Hill Collins, entre outras pensadoras, aos plantões em uma unidade de saúde da periferia de Salvador, onde atua há dez anos.
Entre conceitos complexos e libertadores como amefricanidade e matripotência, ela atende mulheres vítimas da violência doméstica, dependentes químicos, jovens agressores e agredidos, adolescentes grávidas, famílias famintas, idosas abandonadas, mães órfãs dos filhos vítimas do genocídio negro. "Dessa experiência eu construo e desconstruo teorias."
Carla conhece bem essas formas de violência não apenas de ouvir e ler, mas de sentir na pele. Ela conta de uma adolescência marcada por assédios, inclusive no âmbito familiar. Como trabalhadora, enfrentou a dureza de ser cordeira de bloco no carnaval de Salvador, quando sentiu recair sobre seu corpo os abusos do capitalismo, do machismo e do racismo.
Foram violências que Carla Adriana da Silva Santos decidiu interromper, buscando se espelhar em mulheres de resistência, como sua mãe, a vendedora ambulante Tânia Maria Rodrigues da Silva e a quilombola Makota Irene —que integra a história da luta conta a escravidão no Brasil— e Carla incorporou ao seu nome.
Atendimento humanizado e cosmopercepção
Uma das questões enfrentadas por Carla Akotirene, no dia a dia profissional, é o racismo religioso.
Nós servidoras e servidores públicos devemos compreender que a dimensão espiritual integra a saúde. É muito comum a gente autorizar que o pastor da igreja vá no leito do paciente fazer uma oração e, no entanto, criarmos dificuldades com a iyalorisà [mãe de santo] que veio trazer um banho de folhas
Para justificar essa compreensão de saúde, lança mão de outra sabedoria africana, a cosmopercepção, difundinda pela socióloga feminista nigeriana Oyèrónk Oywùmí.
"Não medimos apenas com os olhos ocidentais, sentimos com a 'cosmopercepcão'. Trabalho com o que ouço, toco, sinto. O pensamento colonizador só enxerga o que está aparente. É como nas redes sociais, onde as pessoas só acreditam porque estão vendo a foto, a filmagem, a marca no corpo. Tudo na lógica da aparência", explica.
Assim, Carla pauta sua escuta sensível aos que buscam no posto de saúde alívio para dores profundas causadas pela combinação destrutiva do racismo, patriarcado e pobreza.
O atravessamento dessas opressões (raça, classe e gênero) é a temática do seu primeiro livro, Interseccionalidade, lançado em 2019, pela coleção Feminismos Plurais, organizada pela filósofa Djamila Ribeiro.
Carla explica que a interseccionalidade é uma ferramenta teórica e metodológica disputada na encruzilhada acadêmica, para pensar a inseparabilidade do racismo, capitalismo e o patriarcado cisheteronormativo. "Trata-se de oferenda analítica preparada pelas feministas negras. Conceitualmente, foi cunhada pela jurista estadunidense Kimberlé Crenshaw, no âmbito das leis antidiscriminação, há 30 anos."
O encarceramento de mulheres negras
O segundo livro, lançado em 2020, é fruto da dissertação de mestrado na UFBA: "O Pá Í Prezadas! Racismo e Sexismo Institucionais tomando bonde no Conjunto Penal Feminino de Salvador".
Carla realizou pesquisa de campo no presídio feminino para perceber as opressões sofridas por mulheres negras em privação de liberdade.
Ela denuncia o encarceramento em massa, o punitivismo e a ausência de políticas públicas para as presas —majoritariamente, pobres, negras, semialfabetizadas, detidas por tráfico de drogas e submetidas a situações de violência, péssimo atendimento médico e intolerância à prática da religiosidade afro-brasileira.
Neste momento, Carla Akotirene se dedica à conclusão da tese de doutorado na qual analisa o sistema de justiça brasileiro.
Quero discutir o sistema jurídico pela ancestralidade africana. Acompanhei a realidade do sistema carcerário, assisti muitas audiências de custódia e percebi as violências naquele espaço, onde a autoridade policial e o que está escrito vale mais do que a palavra do réu
Compartilhar conhecimentos
Egressa de projetos sociais, como o Instituto Steve Biko, onde recebeu formação e autoestima, Carla e outras companheiras criaram o Opará Saberes, iniciativa para instrumentalizar mulheres negras no ingresso em cursos de pós-graduação. "Quero ressarcir meu povo com conhecimento."
Sobre as críticas que recebe nas redes sociais sobre o seu ímpeto intelectual, vindas até mesmo de outras mulheres negras, ela aponta a falta que faz os ensinamentos da ancestralidade religiosa.
"O que nos move é a bagagem ancestral. Quem vive a epistemologia do terreiro sabe que nenhuma animosidade entre os ancestrais vai impedi-los de serem nobres, justos e éticos mediante a presença de outras divindades. Até mesmo quando o ilá [som emitido pelos orixás] é ecoado baixinho por um mais novo, a gente vê o mais velho apresentar seu brado, a búfala faz logo hey, os guerreiros dão rhá e as mães liquidificam o choro da lealdade independentemente das memórias que guardam de seus desafetos."
Nas redes, Carla Akotirene também populariza a ideia de Ori, entendimento metafísico yorubá, que dá conta da essência do ser, representada por sua cabeça, elo de ligação com as divindades ancestrais.
Com o Ori encharcado pelas águas de Oxum, que se infiltram nas estruturas, ela vai disputando espaço na academia e se constituindo tal como uma yalodê epistêmica, assumindo esse cargo feminino nas disputas intelectuais e nas batalhas cotidianas.
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