Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
13 de maio: cantor Lazzo Matumbi é a voz que denuncia a abolição inacabada
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Se há algo a celebrar neste 13 de maio é, sobretudo, a incansável disposição das pessoas pretas do Brasil de lutarem por seus direitos, enfrentando cotidianamente o racismo.
A necessidade de resistirem às inabaláveis estruturas racistas faz do ato da Princesa Isabel, em 1888, mais uma falsa encenação da integração racial deste país.
Neste sentido, os gritos por liberdade e direitos da população negra brasileira encontram no timbre do cantor Lazzo Matumbi uma perfeita interpretação.
São dele os graves a embalar canções em gêneros musicais, como o samba, o reggae, ijexá, o soul e outras sonoridades de matriz africana, com talento e versatilidade.
Além da voz, o artista oferece em canções autorais, como 14 de Maio, a poesia e o discurso que refletem anseios ancestrais e resistências contemporâneas.
A música, composta em parceria com o poeta Jorge Portugal, reúne beleza e indignação para denunciar a inacabada abolição da escravidão. Aborda o dia seguinte, quando os negros descobriram que a Lei Áurea, de apenas dois artigos, não garantia a cidadania.
No dia 14 de maio, eu saí por aí / Não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir / Levando a senzala na alma, eu subi a favela / Pensando em um dia descer, mas eu nunca desci
Zanzei zonzo em todas as zonas da grande agonia / Um dia com fome, no outro sem o que comer / Sem nome, sem identidade, sem fotografia / O mundo me olhava, mas ninguém queria me ver
"É a nossa história, é o eco de todos nós. De uma guerra que estamos travando desde que nos tiraram da África e continuamos resistindo em uma sociedade que insiste em não nos respeitar como seres humanos", afirma Lazzo Matumbi em entrevista à coluna.
A canção 14 de Maio, que agora em 2021 ganhou um videoclipe dirigido pela cineasta Urânia Munzanzu, integra o CD comemorativo dos 40 anos de carreira de Lazzo.
"ÀJÒ", nono álbum do cantor, vem sendo produzido desde 2016. O título é uma palavra de origem yorubá que significa "jornada". No Brasil, as comunidades religiosas de terreiros utilizam o termo Àjò como união.
Diálogo com jovens artistas
No repertório do disco, as canções autorais inéditas e as releituras de canções próprias contam com participações das cantoras Larissa Luz e Luedji Luna, do rapper BNegão e do maestro Bira Marques, da Orquestra Afrosinfônica.
"Mesmo maduro, comemorando quatro décadas de carreira, diante das dificuldades, parece que estou começando. Cada dia é um degrau, é uma conquista. Junto comigo, muita gente. Por isso é muito agradecimento a essa união, esse ajó".
Lazzo conta que recebeu muitas colaborações musicais e sugestões de regravações, que não cabem em apenas um álbum. Um segundo lançamento já está em produção.
Em diálogo constante com a cena musical contemporânea, Lazzo vem sendo reverenciado por diversos artistas e grupos que o reconhecem como referência em suas carreiras, tendo feito recentemente participações nos discos de Pitty (Matriz, 2019), Larissa Luz (Trovão, 2019) e Baiana System (single "Calundu", 2014).
"Quando me junto com essa nova geração, eu sinto que a nossa caminhada não para. Que a nossa jornada não é à toa. Muitos lutaram para que esses outros chegassem com a força do novo. Por isso mantenho um pé na ancestralidade e outro no futuro".
Sobre a temática racial, o artista já havia imortalizado outros versos autorais como "Navio Negreiro já era / Agora quem manda é a galera / Nesta cidade nação", da música Abolição.
Além de ter composto um hino definitivo que sintetiza as amarguras e esperanças do povo negro, "Alegria da Cidade", com o mesmo parceiro Jorge Portugal, que diz: "Apesar de tanto não, tanta dor que nos invade, somos nós a alegria da cidade".
O encontro com o reggae, parente do samba
Lázaro Jerônimo Ferreira nasceu em 1957 e iniciou a carreira solo em 1981, como Lazzo Matumbi, depois da experiência como Lazinho do Ilê, integrando a ala de canto do mais antigo bloco afro do carnaval baiano, o Ilê Aiyê, entre 1978 e 1980.
A carreira inicia justamente no ano da morte daquele que se tornará uma das mais presentes referências musicais, o jamaicano Bob Marley, principal divulgador da música reggae no mundo.
"Eu venho do samba, das rodas e das quadras dos blocos afro, quando eu ouvi o reggae, eu senti a familiaridade, semelhante a quando encontramos um parente. Era a mesma rítmica, só que ao invés do grave dos tambores, tinha o tom melódico do contrabaixo. E ainda tinha a relação com a autoestima do negro e a valorização da nossa história. Bateu tudo certo", lembra.
"Eu ouvia aquele raggamuffin feito pelos jamaicanos e pensava: 'velho, esses caras estiveram aqui na Bahia, ouviram o samba de roda do Recôncavo, o samba chula'. É um reencontro com tudo que a Mãe África nos dá".
Entre esses artistas da Jamaica está Jimmy Cliff, que Lazzo conheceu em 1991, em Salvador. O reggaeman ficou encantado com o talento do baiano, como cantor e percussionista, e o convidou para integrar sua banda.
Foram três anos em turnê, cantando e tocando ao lado de Jimmy Cliff e do músico Gabi Guedes, em cidades da Europa, Estados Unidos e Ásia. Parte do álbum "Arte de Viver, de 1995, foi gravado por Lazzo na Jamaica.
"Percebi que chegava o momento de voltar para a minha terra. Foi quando o carnaval da Bahia estava mudando de cara, centrando nos blocos de cordas, que apartavam a participação dos negros. Eu então criei o Coração Rastafári, um bloco para meu povo desfilar sem pagar. A fantasia era trocava por uma doação, para curtir todos juntos, do gari ao juiz, tendo a música como um aconchego, um dengo e um elo entre a gente".
Essas e outras histórias de uma das vozes mais marcantes da cultura negra brasileira serão contadas em um documentário biográfico, outro projeto que a cineasta Urânia Muzanzu está tocando nesta celebração dos 40 anos da arte de Lazzo Matumbi.
"A gente precisava revistar a obra de Lazzo, ouvir esse artista, para lembrar de onde que a gente veio, o quanto que a gente é grande, que somos um povo com uma cultura e uma musicalidade tão fortes. Lazzo é de uma nobreza e de uma força que inspiram. Com o caminhar dele, com o continuar dele, ele vai nos dizendo: é pra frente que a gente vai e a gente vai seguir", conta Urânia, diretora e roteirista de Abô, "um filme música", como ela definiu.
Mas minha alma resiste, meu corpo é de luta / Eu sei o que é bom, e o que é bom também deve ser meu / A coisa mais certa tem que ser a coisa mais justa / Eu sou o que sou, pois agora eu sei quem sou eu
Como nos versos de 14 de Maio, Lazzo nos convoca à atitude diante desta realidade adversa: "Precisamos ficar atentos, não podemos esperar que façam por nós. Somos nós que precisamos fazer e escrever nossa própria história".
Neste 13 de maio de 2021, torna-se ainda mais necessário ouvir a voz e os versos de Lazzo Matumbi, como inspiração, encorajamento e esperança, na quebra total das correntes que ainda nos escravizam.
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