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André Santana

REPORTAGEM

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Pabllo Vittar e TikTok: perfis usam humor contra intolerância ao candomblé

Koanza Aundê, personagem do ator Sulivã Bispo, na sede do Ilê Aiyê (2020)  - Reprodução
Koanza Aundê, personagem do ator Sulivã Bispo, na sede do Ilê Aiyê (2020) Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

20/06/2021 04h00

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Artistas utilizam o humor para abordar de forma positiva o candomblé nas redes sociais e combater a intolerância religiosa.

O que Mãe Rita, Makota Koanza e Pai Bogojhô têm em comum? Além do fato de serem de religião de matriz africana, são personagens ficcionais que têm levado para a internet questões importantes, como o respeito e a preservação da tradição.

De forma cômica e linguagem simples, os vídeos dessas personagens têm garantido muitos seguidores para os artistas responsáveis por dar vida a essas figuras debochadas.

Assim com as criaturas, os criadores Léo Santos, Sulivã Bispo e Junior Pakapym são do candomblé. Os três baianos foram criados em famílias dedicadas à religiosidade afro-brasileira e herdaram o compromisso de defender e preservar esse legado.

Mãe Rita: uma yalorixá de respeito

Leonardo Silva Santos, 23, começou a fazer vídeos pelo incômodo em não encontrar nas redes sociais as histórias que vivencia desde criança em sua comunidade religiosa.

A partir de 2018, ele passou a fazer graça na internet sobre os diferentes tipos de personagens que frequentam o candomblé. Entre eles, a yalorixá (mãe de santo) Mãe Rita ganhou destaque e conquistou fãs.

Mãe Rita - Heloise Melo - Heloise Melo
A personagem Mãe Rita apresenta o cotidiano dos terreiros de candomblé com humor e respeito
Imagem: Heloise Melo

"Não falto com respeito com a religião que habita em mim desde que nasci. Em meus vídeos não há xingamento, nem agressões. São histórias engraçadas do dia a dia do terreiro para contribuir com o fim do preconceito"

Leonardo Silva Santos

Ele conta que a personagem principal dos vídeos é uma yalorixá muito rigorosa com a tradição e autêntica em suas palavras. "Mãe Rita foi Deusa do Ébano [título dado à rainha do bloco Ilê Aiyê], cultua a religião na África e no Brasil e tem contato direto com os orixás. É uma super-heroína do axé", detalha.

Sem formação em artes cênica ou audiovisual, Léo conta que faz tudo sozinho, desde o roteiro à caracterização das personagens, gravação e edição dos vídeos. A única contribuição vem da mãe, Linda Santana, que é costureira de trajes religiosos. "Nos primeiros vídeos, eu pegava as roupas de minha mãe emprestadas. Até que ela passou a costurar especialmente para Mãe Rita."

Dona Linda é uma das inspirações para a criação da personagem, além de outras religiosas mais velhas (chamadas egbomis) do terreiro que ele frequenta, na cidade de Amélia Rodrigues, a pouco mais de uma hora de Salvador.

Paródia de Anitta, Iza e Pabllo Vittar

Léo lembra que no início foi aconselhado a mudar a temática dos vídeos pois não teria engajamento tanto nas redes como na imprensa, que ainda desprezam a importância das religiões afro-brasileiras. Ele insistiu e hoje tem mais de 51 mil seguidores no Instagram e outros 70 mil no Facebook, além de vídeos com quase 1 milhão de visualizações.

"Sou muito bem recebido, mesmo por quem não é do candomblé. Recebo comentários de seguidores que são ateus, evangélicos e gente que diz: 'Não entendo tudo, mas eu adoro os vídeos, dou muitas risadas'. Isso é ótimo porque o candomblé é uma religião de inclusão."

Humorista Léo Santos aborda o candomblé com humor nas redes sociais - Douglas Teles  - Douglas Teles
O humorista Léo Santos aborda o candomblé com humor nas redes sociais
Imagem: Douglas Teles

Mãe Rita dá conselhos, conta casos, opina sobre assuntos atuais e participa de clipes com paródias de músicas de sucessos. A mais recente criação de Léo Santos é uma versão da música Ama sofre e chora, da Pabllo Vittar, que se transformou na história de uma cliente que quis fazer "amarração" para o namorado, mas não pagou pelos serviços de Mãe Rita.

"Nos vídeos das paródias, eu conto com algumas parcerias para a filmagem, mas as letras são minhas", diz o artista que começa a contabilizar o retorno financeiro do seu trabalho, em stories e ensaios fotográficos.

"Não é somente humor, é resistência. Quero ajudar as pessoas a não terem vergonha de dizer que são do candomblé."

Koanza Auandê: ironia e sofisticação contra intolerantes

Humor consciente é também a inspiração do ator Sulivã Bispo, 27, que já possui trabalhos premiados no teatro, participações em produções para a TV e sucesso na internet por conta da personagem Mainha, do canal Na Rédea Curta, parceria com o ator Thiago Almasy.

Sulivã acaba de estrear um quadro da personagem Koanza no canal Afro.TV. "Gosto de fazer um humor encantador, que fala bem da gente."

Sulivã criou Koanza Auandê em 2016 para o espetáculo Rebola. "Queria uma personagem que fosse chique e discutisse racismo, intolerância religiosa e homoafetividade de forma sofisticada, irônica, sarcástica."

Assim nasceu a makota (cargo ocupado por mais velhas no candomblé de nação Angola) que fala sem medo sobre mazelas sociais brasileiras, com graça e elegância.

Koanza Auandê, interpretada por Sulivã Bispo, tem falas destemidas em defesa da religião - Clériston Alves - Clériston Alves
Koanza Auandê, interpretada por Sulivã Bispo, tem falas destemidas em defesa da religião
Imagem: Clériston Alves

"Koanza tem o jeito das minhas mais velhas, que contam histórias hilárias, sem perderem a pose e a beleza", explica o artista que é neto de uma yalorixá, com mais de 40 anos dedicados à religião dos orixás.

Entre as homenageadas na construção da personagem, está a atriz e educadora Arany Santana, atual secretária de Cultura da Bahia, referência da infância de Sulivã no bairro do Curuzu, onde nasceu e foi criado, acompanhando o bloco afro Ilê Aiyê, do qual Arany é uma das diretoras.

Koanza joga búzios para Oprah e casal Obama

O ator se formou na Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia e atuou por três anos no Bando de Teatro Olodum, companhia que gerou artistas como Lázaro Ramos, Valdinéia Soriano e Érico Brás. "No Bando, eu aprendi que ser engraçado é bom e que o humor tem de provocar e conscientizar."

Muito bem relacionada, Koanza tem entre os amigos, nomes como a apresentadora Oprah Winfrey e o casal Michele e Barack Obama. Com eles, trata de assuntos polêmicos como relacionamentos inter-raciais e a ausência de negros nos meios de comunicação.

Com irreverência, Sulivã aborda temas sérios como o racismo e a violência sofrida pelos religiosos do candomblé, do lugar de quem já vivenciou essas práticas preconceituosas.

"Certa vez, em um trabalho artístico, uma figurinista perguntou à produção se teria outras pessoas para vestir minha roupa. Isso porque eu estava de branco e com minhas contas", lembra.

A personagem Koanza dá voz às indignações e aos posicionamentos do ator. "Minha existência é resistência. Eu me expresso pelos meus personagens e dou voz à minha própria história e de muitas irmãs e irmãos que ainda não podem falar. Faço isso para honrar meus antepassados."

O ator, que já possui 112 mil seguidores em seu perfil no Instagram, se prepara para estrear um novo espetáculo online dedicado às entidades infantis do candomblé, os erês.

Pai Bogojhô aprendeu tudo sobre a religião pela internet

O mais recente a entrar nesta trincheira do humor em defesa da religião é o artista gráfico e ilustrador Antônio dos Santos Jr., o Junior Pakapym, 33, que há pouco mais de um mês passou a produzir e postar vídeos de críticas a práticas consideradas desrespeitosas à tradição do candomblé.

Pai Bogojhô e Seu Paipava: personagens humorístico de Junior Pakapym - Reprodução Instagram - Reprodução Instagram
Pai Bogojhô e Seu Paipava: personagens humorístico de Junior Pakapym
Imagem: Reprodução Instagram

O mais famoso dos personagens interpretados por Junior é o Pai Bogojhô, definido pelo artista como um homem branco que nunca pisou em um roncó (espaço sagrado de iniciação nos terreiros), mas fez curso de pai de santo, de jogo de búzios e até de benzedeiro —tudo online.

Bogojhô é adepto do candomblé vegano e da venda de apostilas com receitas de ebós, as oferendas às entidades. São práticas questionadas por Junior Pakapym, nascido em uma família de religiosos tradicionalistas.

"Tenho 17 anos de iniciação, mas já nasci na religião, com minha bisavó, minha avó e depois minha mãe à frente de um terreiro da minha família. Sou de uma época que não existia internet", conta o Tata Xicarangoma, cargo dos músicos nos candomblés da nação Angola.

Autodidata, Pakakyn começou a fazer ilustração de orixás aos oito anos e, desde 2010, atua como designer gráfico. Ele produz os vídeos sozinho, em seu próprio quarto. Em tão pouco tempo, já ultrapassou 11 mil seguidores no Instagram.

O artista considera que o sucesso dos vídeos se deve ao uso do humor para tematizar questões que já incomodam muitos religiosos do candomblé.

"Deixo bem 'escuro' que não tenho nada contra pessoas brancas no candomblé e não há nenhum desrespeito aos sacerdotes brancos. A crítica é para quem está representando mal a religião, deturpando nossas tradições", explica, citando vídeos que considera absurdos como cerimônia de casamento ou de aniversário para orixás.

Legado de resistência e ancestralidade

Pakapyn é sobrinho da educadora e ativista Valdina Pinto, a makota Valdina, falecida em 2019, que dedicou sua vida à defesa do candomblé e da cultura negra.

"Ela é minha mestra, sempre fui muito próximo a ela. A filosofia congo ensina que há assuntos que meu mestre tratou e eu não saberei tratar e outros que eu poderei avançar e meu mestre não poderá por não estar mais neste plano."

Junior Pakapym: preservação da tradição do candomblé - Acervo Pessoal - Acervo Pessoal
Junior Pakapym: preservação da tradição do candomblé
Imagem: Acervo Pessoal

Junior integra o grupo Irmãos no Couro e, junto a outros músicos do candomblé do bairro negro do Engenho Velho da Federação, realiza lives sobre toques e cânticos sagrados, o que vêm amenizando os religiosos que estão sem poder realizar atividades nos terreiros por conta da pandemia.

O próximo passo é reunir algumas parcerias para a produção de uma série humorística para o YouTube, com conteúdos históricos e informações jurídicas.

"Algo bem elaborado, que combata a ignorância e a intolerância contra o candomblé e coloque nosso povo como sujeitos, com suas formas e jeitos negros de viver a religião."