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André Santana

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Mion, Huck e Leifert: Troca de cadeiras mantém padrão de branquitude na TV

Escolha por Marcos Mion aos sábados, Luciano Huck aos domingos e Tiago Leifert para diferentes atrações ignora diversidade e demanda por representatividade - Reprodução
Escolha por Marcos Mion aos sábados, Luciano Huck aos domingos e Tiago Leifert para diferentes atrações ignora diversidade e demanda por representatividade Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

04/09/2021 04h00

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As substituições na apresentação dos programas do final de semana na maior emissora do país revelam a falta de interesse pela diversidade brasileira.

A Rede Globo continua apostando no padrão eurocêntrico na escolha dos rostos a comandar suas atrações.

Sempre foi assim. Não há nenhum sinal de que a emissora dos Marinho pretenda dialogar com uma demanda crescente no país por representatividade.

Ao contrário, enquanto faz essas escolhas raciais, a televisão promove a subalternização e a desumanização dos não brancos, em seus conteúdos.

A negação do Brasil multiétnico

Com a notícia da saída do apresentador Fausto Silva após mais de 30 anos na emissora, a imprensa passou a especular os possíveis candidatos à substituição.

Além de Luciano Huck, que acabou ganhando o posto, outros nomes foram levantados como Márcio Garcia, Rodrigo Faro, Marcos Mion, André Marques, Tiago Leifert, Otaviano Costa, Celson Portiolli, Tiago Abravanel, além de Xuxa e Eliana.

O que há em comum nos nomes desta lista?

Todos representam a branquitude como único modelo estético aceitável na televisão do Brasil.

A mesma escolha é seguida, com raras exceções, nas telenovelas, séries e programas jornalísticos da emissora.

Tiago Leifert - Reprodução/Globoplay - Reprodução/Globoplay
Tiago Leifert representa o padrão privilegiado pela emissora, que serve para várias atrações diferentes
Imagem: Reprodução/Globoplay

Essa exclusão tão evidente recebeu estudo aprofundado do cineasta e pesquisador Joel Zito Araújo, diretor de Filhas do Vento, Raça, Meu Amigo Fela, entre outras obras importantes.

A investigação feita por Araújo, apresentada em tese de doutorado na USP (Universidade de São Paulo), livro e no contundente documentário A Negação do Brasil (2000), é referência fundamental para quem quer entender como se processa o racismo na mídia brasileira.

Desde os programas infantis

As crianças das décadas de 1980 e 1990 foram acostumadas a ter um único padrão de beleza exibido diariamente na tela da televisão, com Xuxa Meneghel e seu séquito de cópias, as paquitas.

O sucesso da apresentadora motivou, tal como acontece agora, possíveis substitutas que espelharam o ideal branco e loiro em rostos como de Angélica Ksyvickis, Eliana Michaelichen, Adriane Kelemen Galisteu, Jackeline Petkovic, Ana Hickmann e outras, cujos sobrenomes revelam a exigência da tevê pela ascendência europeia.

Érico Brás e Manoel Soares - reprodução - reprodução
Érico Brás (Se Joga) e Manoel Soares (É De Casa)
Imagem: reprodução

A apresentadora Mara Maravilha e o músico Netinho de Paula, que fizeram muito sucesso na televisão em décadas passadas, conseguiram romper essa lógica racista excludente, sendo exceções que confirmam a regra.

Recentemente, os baianos Manoel Soares e Érico Brás, que se destacam nos programas É de Casa e Se Joga, respectivamente, dão mostra do talento que tenta ultrapassar os limites impostos pela segregação racial.

Maioria minorizada

Ter poucos nomes negros para citar revela como o racismo na televisão transforma uma maioria populacional brasileira em minoria representada em um espaço de reconhecimento.

Esse é o tema abordado nos livros Branquitude e Televisão (2021) e Maioria Minorizada (2020), escritos pelo músico, repórter, apresentador e pesquisador Richard Santos, professor da UFSB (Universidade Federal do Sul da Bahia). Doutor em Ciências Sociais e Mestre em Comunicação, ele está à frente do curso de Jornalismo na UFSB, que ajudou a implantar.

Livros de Richard Santos sobre a televisão - divulgação - divulgação
Livros de Richard Santos sobre a televisão
Imagem: divulgação

As obras trazem percepções construídas pelo autor ao longo de uma trajetória artística e acadêmica dedicada a estudar o fenômeno da branquitude como reflexo das relações de poder a partir dos conteúdos televisivos.

A televisão brasileira, ao utilizar da branquitude para definição de seus padrões de emissão, produção e estética, desidentifica o sujeito negro e coloca-o em um não lugar comportamental, como um não humano. Desconstrói a identidade desse sujeito em relação a outros grupos humanos, povos e culturas. Essa coletividade de sujeitos desidentificados daria lugar ao que chamo de Maioria Minorizada."
Richard Santos, professor da UFSB

Richard Santos pode ser incluído na restrita lista de negros que conseguiram furar o bloqueio e traçar uma trajetória televisiva, sendo um dos poucos apresentadores negros na televisão aberta do Brasil.

Já alertamos aqui na coluna sobre o fenômeno dos tokens.

Com o nome artístico Big Richard, oriundo de sua atuação como rapper e ativista do movimento Hip Hop, iniciou na década de 1990, colaborando em programas da MTV.

Teve outras experiências na TV Globo, TV da Gente (tentativa empresarial de Netinho de Paula), além da Band e TV Brasil, onde chegou a apresentar os programas Paratodos e Caminhos da Reportagem.

Richard Santos pesquisador sobre a televisão - Divulgação - Divulgação
Richard Santos: 12 anos pesquisando a televisão brasileira e a imagem da 'maioria minorizada'
Imagem: Divulgação

TV é para os negros o que espelho é para o vampiro

Em entrevista à coluna, Richard Santos contou as dificuldades no início da carreira, quando era tratado como um rosto acionado para determinada pautas e momentos específicos —no caso a música negra—, com contratos precários, sem segurança e valorização.

Ele explica que a pesquisa sobre imagem inicia justamente tentando compreender os processos vivenciados por ele e por outros negros, gerando, como ele define, uma "escrita acadêmica com perspectiva insurgente".

Se a gente fala que o racismo é estrutural, a comunicação também é estrutural, é o que determina valores, lugares, é o que constrói e destrói autoestima e perspectivas de vidas soberanas."
Richard Santos, professor da UFSB

Sobre as atuais substituições de apresentadores na tevê, Richard destaca que é uma "dança das cadeiras" feita entre representantes de uma elite branca.

"Os donos das televisões, aqueles controladores, fazem televisão, articulam projetos e programas para si, refletindo sua própria imagem e a imagem de controle daqueles que precisam ser subalternizados."

Mudam-se os nomes e sobrenomes, mas a população negra, maioria no país, continua a olhar para a tevê e não enxergar sua própria imagem. Semelhante, como comparou o escritor Muniz Sodré, ao Drácula que não vê a sua imagem refletida no espelho.