Calma, gente. Glória não "traiu movimento" nem endossou discurso de ódio
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A repercussão da declaração dada pela jornalista Glória Maria sobre o politicamente correto diz muito do radicalismo político potencializado nas redes sociais, onde frases esvaziadas de um contexto são utilizadas para justificar opiniões extremistas.
Por outro lado, a trajetória da jornalista, em um contexto de racismo e sexismo que marcam a televisão brasileira, exemplifica a prática do tokenismo, que consiste na escolha de uma única figura, um token (símbolo, em inglês), para responder à crítica de falta de diversidade e inclusão nos ambientes.
Em uma live com a jornalista Joyce Pascowith, na última sexta-feira (25), Glória Maria disse que o politicamente correto é um porre.
"Eu não sou politicamente correta e não vou ser, não adianta. Não venho de um mundo politicamente correto".
Perguntada sobre as denúncias de assédio sexual e assédio moral que rondam a emissora na qual trabalha há 40 anos, Glória respondeu:
"Eu acho tudo isso um saco. Hoje tudo é racismo, preconceito e assédio. A equipe com que trabalho me chama de 'neguinha', de uma forma amorosa e carinhosa. Estou há mais de 40 anos na televisão, já fui paquerada, mas nunca me senti assediada moralmente".
Bastou esse trecho de poucas frases, retirado de uma entrevista de cerca de 60 minutos, para que a jornalista fosse utilizada como justificativa para lutas travadas com muito extremismo nas redes sociais.
Por um lado, militantes decepcionados pela "traição" de Glória às lutas feministas e antirracistas. De outro, figuras que se promovem politicamente a partir do ódio às bandeiras sociais e de igualdade se aproveitando do posicionamento da jornalista para endossar seus discursos.
É possível perceber a avaliação apressada do primeiro grupo e o oportunismo do segundo.
Não dá para generalizar
Antes de tudo, é preciso assistir a toda a entrevista e conhecer, minimamente, a trajetória de Glória Maria no jornalismo televisivo para entender que é impossível enquadrá-la como inimiga das reivindicações levantadas por mulheres e pessoas negras por respeito e oportunidade.
Em nenhum momento a jornalista nega a existência do racismo ou do assédio sofrido por mulheres. Ela fala do excesso de vigilância em uma "cultura hoje que nada pode. Tem que ter uma diferenciação, não dá para generalizar tudo", afirma.
Não dá para generalizar mesmo. A própria Glória Maria já declarou seu orgulho em ter sido a primeira pessoa no Brasil, na década de 1970, a usar a Lei Afonso Arinos, que punia o racismo, não como crime, mas como contravenção, por conta de um constrangimento racial sofrido em um hotel no Rio de Janeiro.
Ser, por muitos anos, a única profissional negra de destaque na televisão brasileira obrigou Glória Maria a criar suas estratégias de resistência e sobrevivência que precisam ser respeitadas.
Exceção que comprova a regra
Trata-se de uma televisão que negava o acesso de pessoas negras em todos os espaços: nas telenovelas, programas infantis e de auditório.
Apesar de denúncias históricas dos movimentos negros, somente agora essas reivindicações estão tomando a dimensão mais ampla causando a impressão, especialmente aos mais jovens, de que esse tema sempre foi tratado abertamente pela sociedade.
Nesta mesma semana, por exemplo, foi publicada uma foto de um encontro das três principais apresentadoras de programas infantis nas décadas de 1980 e 1990.
Rapidamente houve o questionamento por parte do público nas redes sociais sobre a hegemonia do perfil eurocêntrico das apresentadoras, todas muito parecidas. Essa sempre foi a aparência privilegiada pela televisão brasileira.
A presença quase que isolada, por muitos anos, de Glória Maria na televisão servia inclusive como exceção para justificar a regra.
Mas também era utilizada, de forma contrária, para deslegitimar as críticas ao racismo.
Certa vez, em um debate acirrado sobre a exclusão do negro na televisão brasileira alguém quis encerrar a conversa com o seguinte questionamento: "Como a televisão brasileira pode ser racista se a apresentadora do programa de maior audiência é uma mulher negra?", referindo-se à presença de Glória Maria no Fantástico.
Utilização de tokens como resposta
A televisão continua sendo racista quando escolhe apenas um casal de atores negros como destaque em diversas produções de dramaturgia.
É uma prática chamada de tokenismo, que vem do termo "token".
Esses símbolos servem para projetar uma imagem distorcida, como se houvesse igualdade em um espaço tão excludente.
Pode ser relacionado ao conceito de "maioria minorizada" criado pelo rapper e pesquisador Richard Santos, professor doutor da Universidade Federal do Sul da Bahia, para analisar o racismo no Brasil.
O autor mostra como a maioria populacional do país, formado por pretos e pardos, é minoria em termos de acesso a direitos, serviços públicos, representação política entre outros aspectos da cidadania. Na televisão brasileira, a visibilidade desta maioria é cuidadosamente regulada, segregada e tornada minoria por um ideal de branquitude.
O primeiro a denunciar o tokenismo teria sido o ativista pelos direitos civis dos afro-americanos, Martin Luther King, em um artigo publicado em 1962. Disse Mister King:
"A noção de que a integração por meio de tokens vai satisfazer as pessoas é uma ilusão. O negro de hoje tem uma noção nova de quem é".
Martin Luther King antecipou o que a população negra tem reivindicado atualmente: a consciência do racismo, o conhecimento dos seus direitos e a cobrança por tratamento digno e respeitoso.
Nem todas aceitam ser chamadas de "neguinhas"
A jornalista pode até não se sentir incomodada com o "gesto de carinho" a partir da cor da sua pele, mas a diferença é que agora ela não é mais a única negra naquele espaço. Outras profissionais negras podem, sim, recusar esse tipo de tratamento e ainda se sentirem incomodadas pelo fato de serem poucas na televisão brasileira.
Respeitar a trajetória de pioneirismo de Glória Maria, que alcançou um espaço de excelência com muito talento e resistência — na entrevista fica evidente sua postura resiliente diante das adversidades — não significa desqualificar a luta das novas gerações que reivindicam por direitos e oportunidades iguais.
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