Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
E se a vida de Pelé ou Beyoncé fosse interpretada por artistas brancos?
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
A tentativa de embranquecimento de figuras históricas negras, como já ocorrido com o escritor Machado de Assis, ganha mais um capítulo. A personalidade desta vez é Esperança Garcia, símbolo da resistência à escravidão.
A escolha da ex-BBB Gyselle Soares para interpretar no teatro a vida da escravizada dificulta uma luta histórica pela valorização de trajetórias inspiradoras de pessoas negras.
Mantém a lógica racista de limitar a artistas de pele preta personagens marcados pela exclusão e desvalorização social, enquanto o heroísmo é destinado aos brancos."
Se a história fosse de uma escrava violentada e humilhada sem resistência provavelmente a escolha não seria da ex-BBB. Mas, como se trata de uma trajetória reconhecida pela historiografia e aplaudida por setores da sociedade, interessa à ideologia racial brasileira que a imagem seja associada a uma pessoa branca.
É como se o brilhantismo do Rei do Futebol, Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, fosse retratado pelas artes em um corpo não negro. Ou o fenomenal talento da diva pop Beyoncé fosse contada na pele de uma mulher branca."
Pode parecer uma inversão ficcional corriqueira para o campo das artes (imitar, usar máscaras, fingir o que não são). Contudo, na prática, trata-se de raras oportunidades para que a imagem de uma pessoa negra seja vista em histórias positivas.
Infelizmente não são poucos os momentos em que a mídia em geral utilizou-se de blackface ou mesmo cara limpa para contar histórias evidentemente negras, como a saga do Egito embranquecida por Hollywood e na telenovela da Record.
Carta escrita por Esperança Garcia foi 'petição' contra violência
Em uma sociedade que insiste em não reconhecer as contribuições do negro para a história deste país e que ainda narra o passado, apagando o protagonismo de homens e mulheres pretas, é inaceitável que uma atriz de pele clara interprete a vida de Esperança Garcia.
A escravizada que nasceu no Piauí, em 1751, tornou-se símbolo da luta da população negra contra a violência do sistema escravista e pelo direito à cidadania.
Uma carta escrita por Esperança Garcia, datada de 1770, e endereçada ao governador da província do Piauí, descreve as violências físicas sofrida por ela e seu filho, ainda criança.
No documento, Esperança, que provavelmente foi alfabetizada por jesuítas, também reivindica o direito, dela e de outras escravizadas, a se confessar e a batizar os filhos.
A carta foi localizada em 1979 no Arquivo Público do Piauí, pelo historiador Luiz Mott e é considerada uma das primeiras reivindicações escritas à mão por uma pessoa escravizada e dirigida a uma autoridade.
A forma como foi redigida tornou a carta uma petição, por expor os fatos —violência sofrida por escravizados—, basear-se no direito e apresentar um pedido objetivo: o retorno à fazenda de onde foi retirada e o direito de viver ao lado do seu marido e de batizar sua filha.
Por essa construção textual e estratégias de defesa apresentadas, Esperança Garcia é considerada a primeira advogada do Piauí e uma das primeiras do Brasil.
Conheça mais sobre esse legado por meio da Fundação Esperança Garcia.
Escravizada é pioneira na escrita de mulheres negras
A trajetória de Esperança Garcia conta ao país, a um só tempo, que pessoas negras lutaram com todos os meios possíveis por liberdade e que uma das armas utilizadas era o domínio da escrita e o conhecimento dos seus direitos, mesmo escassos à época.
Essa é uma notícia que faz muita diferença para um país que ainda hoje resiste em considerar a contribuição intelectual e criativa da população negra, sobretudo, a escrita de mulheres negras.
São raras as escritoras de pele preta com obras reconhecidas pelos espaços legitimadores, como editoras, universidades, jornais e academias de letras.
A carta de Esperança Garcia antecede o trabalho da maranhense Maria Firmina dos Reis (1822-1917), autora de Úrsula, de 1859, primeiro romance escrito por uma mulher no Brasil.
Esperança também é antecessora das escritas de resistência de mulheres negras em diversas áreas ainda controladas pelo racismo e sexismo, como literatura, jornalismo, educação, política, direito e todo o sistema jurídico.
Para que essa referência potente se materialize como inspiração às novas gerações é fundamental que a história de Esperança Garcia seja contada, evidenciando o fato de ela ter sido uma mulher negra. Assim, mais pessoas pretas terão motivos de orgulho e de encorajamento no enfrentamento às segregações.
Além disso, toda a sociedade poderá ser convencida de que dignidade e cidadania são condições essenciais para pessoas de "todas as cores", inclusive as de pele preta.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.